O Direito de Família lida com um dos mais íntimos e complexos campos das relações humanas: filiação, parentalidade, laços afetivos, rupturas e reconstruções. Essas relações carregam não apenas normas jurídicas, mas também subjetividades profundas, desejos, angústias, fantasias, traumas e inconsciente. A psicanálise, como disciplina teórica-clínica que investiga o sujeito humano, especialmente sua vida psíquica inconsciente, pode oferecer um apoio essencial para aprimorar a atuação jurídica nesse campo tão importante.
Este artigo discute como a psicanálise pode encaminhar para boas práticas, interpretações e decisões no Direito de Família, os benefícios, os limites e os desafios éticos.
Para compreender como a psicanálise conversa com o Direito de Família, é preciso retroceder a alguns conceitos centrais:
Inconsciente: segundo Freud, existe uma parte da vida psíquica que não está acessível à consciência, mas que influencia intensamente desejos, escolhas e repetições. A tomada de decisões jurídicas que ignoram o inconsciente corre o risco de serem superficiais, não alcançarem o que está em jogo subjetivamente.
Desejo: não identificado com a mera vontade consciente, mas movido por forças inconscientes, fantasias. Na parentalidade, nas disputas de guarda, nas rupturas conjugais etc., o desejo (o que se espera, o que se fantasia, o que cada sujeito “projeta”) está presente.
Estrutura familiar psíquica: ideias como o Complexo de Édipo, as posições (pai, mãe, filho), bem como as teorias de Melanie Klein, Jacques Lacan, e psicanálise de casal/família, ajudam a entender as dinâmicas intrafamiliares (poder, culpa, identificação, inveja, rivalidade, vinculação etc.).
Transferência/Contratransferência: embora tradicionalmente clínicos, esses fenômenos também ocorrem nos âmbitos judiciais e extrajudiciais, em audiências, em perícias, na mediação, na atuação de advogados, juízes e psicólogos forenses. Reconhecer que quem fala ou decide pode estar movimentado por vínculos e fantasias inconscientes ajuda a explicar melhor a narrativa de partes e testemunhas.
A seguir, alguns domínios específicos em que a psicanálise pode ter impacto prático:
Problemas comuns:
Disputas litigiosas arduamente polarizadas; falta de reconhecimento dos laços afetivos e do papel subjetivo dos genitores; dificuldade de ver o que cada sujeito projeta/fantasia no outro.
Como a psicanálise contribui:
Auxilia a compreender os vínculos afetivos, o sofrimento subjetivo da criança, o papel psíquico dos pais, possibilita uma escuta sensível que vai além da matéria fática (horários, visitas etc.). Pode informar pareceres psicanalíticos mais profundos.
Problemas comuns:
Narrativas simplistas, polarização, uso instrumental da criança ou dos sentimentos.
Como a psicanálise contribui:
Psicanálise permite averiguar como se constituem as figuras parentais para a criança, quais fantasias, inquietações e modos de subjetivação estão mobilizados, o que pode ajudar o julgador a distinguir entre conflito legítimo e alienação verdadeira.
Tema Jurídico: Separação/divórcio Problemas comuns:
Reações emocionais vivas, resistência, descaso pelos laços afetivos, projeções de culpa.
Como a psicanálise contribui:
A escuta psicanalítica pode abrandar o litígio, reconhecer a dor, o luto pelo desenho familiar que se desfaz, orientar mediação ou práticas restaurativas, apoiar decisões que considerem o bem‑estar psíquico da criança.
Tema Jurídico: Parentalização e cuidador principal Problemas comuns:
Quando um dos genitores assume papel maior de cuidado e o outro é visto apenas como provedor; ou em famílias monoparentais, famílias extensas ou formadas por adoção.
Como a psicanálise contribui:
Reconhecimento das funções parentais não apenas protocolares. A psicanálise ajuda a apontar entre ausência real ou função parental emocional, inclusive nos casos de adoção ou guarda por terceiros.
Tema Jurídico: Pluralismo familiar e novas configurações Problemas comuns:
Famílias homoafetivas, de pessoas solteiras com filhos, arranjos reprodutivos assistidos, multiparentalidade.
Como a psicanálise contribui:
A psicanálise ajuda a compreender a diversidade, as fantasias, as identidades parentais variadas, além dos padrões normativos herdados. Pode desconstruir estereótipos e promover uma justiça mais adaptada à realidade.
Abordagem Psicanalítica”) que articula teoria psicanalítica (inconsciente, desejo, estrutura familiar) com normas, instituições e casos concretos.
Para que a psicanálise possa contribuir de fato no Direito de Família, algumas medidas práticas se mostram úteis:
Para tornar concreto, imagine caso de disputa de guarda entre mãe e pai. O pai argumenta que a mãe é emocionalmente inconstante, mas apresenta provas circunstanciais inadequadas. A mãe, por sua vez, acusa o pai de evitar responsabilidades emocionais. A criança demonstra resistência em visitas, com sintomas de ansiedade.
A psicanálise não substitui o Direito, nem pretende ditar decisões judiciais, mas oferece uma lente imprescindível para se aproximar da complexidade humana que está por trás dos litígios no Direito de Família. Ela permite humanizar as decisões, trazer à luz o que permanece oculto os desejos, fantasias, sofrimentos que influenciam atos e relações. Integrar psicanálise ao direito de família significa não apenas interpretar normas, mas cuidar da vida psíquica dos envolvidos, especialmente dos mais vulneráveis: crianças e adolescentes. Esse olhar ampliado fortalece o Direito, tornando-o mais justo, sensível, realista.
Bibliografia recomendada
Aqui vão obras e artigos que podem servir de base teórica e prática:
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma Abordagem Psicanalítica. Forense, 1999.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha & GROENINGA, Giselle Câmara. Direito de Família e Psicanálise. Editora Imago, 2003.
“Psicanálise e Direito de Família: uma interlocução necessária” — Iris Danielle de Araujo Santos; Betty Bernardo Fuks.
“Direito de família e psicanálise: uma abordagem da alienação parental a partir das fórmulas quânticas da sexuação” — artigo de pós-doutorado na UVA (Universidade Veiga de Almeida).
“Interfaces entre Direito de Família e Psicanálise” — Ligia Ziggiotti de Oliveira.
“A família pela óptica psicanalítica” — Breno Valério Fausto de Medeiros; Raphael Valério Fausto de Medeiros.
Freud, Sigmund — obras clássicas (ex.: O Ego e o Id, Totem e Tabu) para fundamentos teóricos. Kleinian literature / Lacaniana — especialmente no que toca estrutura e teoria da sexualidade; Melanie Klein sobre posições, fantasias, Lacan sobre linguagem, gozo, símbolo, lei
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