Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha

A importância da psicanálise para o Direito de Família

Postado em 17 de setembro de 2025 Por Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha Advogada, inscrita na OAB/PE sob o nº 64904, graduada em Direito pela AESO e pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UNINASSAU. Psicanalista clínica e didata, com sólida formação humanística e técnica, integra a prática jurídica à escuta qualificada, o que fortalece sua atuação na mediação e resolução de conflitos complexos. Professora nas disciplinas de Direito Civil e Processo Civil. Possui ampla atuação nas áreas de Direito de Família e sucessões e Direito Imobiliário assim como toda área cível, com foco especial em demandas que envolvem alta carga emocional e questões técnicas. Reconhecida pela abordagem estratégica, ética e interdisciplinar, destaca-se como profissional comprometida com a justiça, a escuta e a transformação de realidades por meio do Direito.

Introdução

O Direito de Família lida com um dos mais íntimos e complexos campos das relações humanas: filiação, parentalidade, laços afetivos, rupturas e reconstruções. Essas relações carregam não apenas normas jurídicas, mas também subjetividades profundas, desejos, angústias, fantasias, traumas e inconsciente. A psicanálise, como disciplina teórica-clínica que investiga o sujeito humano, especialmente sua vida psíquica inconsciente, pode oferecer um apoio essencial para aprimorar a atuação jurídica nesse campo tão importante.

Este artigo discute como a psicanálise pode encaminhar para boas práticas, interpretações e decisões no Direito de Família, os benefícios, os limites e os desafios éticos.

1.  Fundamentos psicanalíticos relevantes

Para compreender como a psicanálise conversa com o Direito de Família, é preciso retroceder a alguns conceitos centrais:

Inconsciente: segundo Freud, existe uma parte da vida psíquica que não está acessível à consciência, mas que influencia intensamente desejos, escolhas e repetições. A tomada de decisões jurídicas que ignoram o inconsciente corre o risco de serem superficiais, não alcançarem o que está em jogo subjetivamente.

Desejo: não identificado com a mera vontade consciente, mas movido por forças inconscientes, fantasias. Na parentalidade, nas disputas de guarda, nas rupturas conjugais etc., o desejo (o que se espera, o que se fantasia, o que cada sujeito “projeta”) está presente.

Estrutura familiar psíquica: ideias como o Complexo de Édipo, as posições (pai, mãe, filho), bem como as teorias de Melanie Klein, Jacques Lacan, e psicanálise de casal/família, ajudam a entender as dinâmicas intrafamiliares (poder, culpa, identificação, inveja, rivalidade, vinculação etc.).

Transferência/Contratransferência: embora tradicionalmente clínicos, esses fenômenos também ocorrem nos âmbitos judiciais e extrajudiciais, em audiências, em perícias, na mediação, na atuação de advogados, juízes e psicólogos forenses. Reconhecer que quem fala ou decide pode estar movimentado por vínculos e fantasias inconscientes ajuda a explicar melhor a narrativa de partes e testemunhas.

2.  Aplicações práticas no Direito de Família

A seguir, alguns domínios específicos em que a psicanálise pode ter impacto prático:

Tema jurídico: Guarda de filhos             

Problemas comuns:

Disputas litigiosas arduamente polarizadas; falta de reconhecimento dos laços afetivos e do papel subjetivo dos genitores; dificuldade de ver o que cada sujeito projeta/fantasia no outro. 

Como a psicanálise contribui:

Auxilia a compreender os vínculos afetivos, o sofrimento subjetivo da criança, o papel psíquico dos pais, possibilita uma escuta sensível que vai além da matéria fática (horários, visitas etc.). Pode informar pareceres psicanalíticos mais profundos.

Tema Jurídico: Alienação parental

Problemas comuns:          

Narrativas simplistas, polarização, uso instrumental da criança ou dos sentimentos.     

Como a psicanálise contribui:

Psicanálise permite averiguar como se constituem as figuras parentais para a criança, quais fantasias, inquietações e modos de subjetivação estão mobilizados, o que pode ajudar o julgador a distinguir entre conflito legítimo e alienação verdadeira.

Tema Jurídico: Separação/divórcio  Problemas comuns:

Reações emocionais vivas, resistência, descaso pelos laços afetivos, projeções de culpa.      

Como a psicanálise contribui:

A escuta psicanalítica pode abrandar o litígio, reconhecer a dor, o luto pelo desenho familiar que se desfaz, orientar mediação ou práticas restaurativas, apoiar decisões que considerem o bem‑estar psíquico da criança.

Tema Jurídico: Parentalização e cuidador principal Problemas comuns:

Quando um dos genitores assume papel maior de cuidado e o outro é visto apenas como provedor; ou em famílias monoparentais, famílias extensas ou formadas por adoção.              

Como a psicanálise contribui:

Reconhecimento das funções parentais não apenas protocolares. A psicanálise ajuda a apontar entre ausência real ou função parental emocional, inclusive nos casos de adoção ou guarda por terceiros.

Tema Jurídico: Pluralismo familiar e novas configurações Problemas comuns:

Famílias homoafetivas, de pessoas solteiras com filhos, arranjos reprodutivos assistidos, multiparentalidade.  

Como a psicanálise contribui:

A psicanálise ajuda a compreender a diversidade, as fantasias, as identidades parentais variadas, além dos padrões normativos herdados. Pode desconstruir estereótipos e promover uma justiça mais adaptada à realidade.

3.  Jurisprudência, legislação e princípios

  • A Constituição Federal do Brasil prevê especial proteção ao núcleo familiar (art. 226) e reconhece valores como afeto e dignidade da pessoa humana como fundamentos.
  • Institutos jurídicos recentes, como o abandono afetivo, a guarda compartilhada, a alienação parental, demonstram reconhecimento, no Direito, da importância dos afetos, das funções parentais exercidas, e não apenas dos vínculos de filiação legais. A psicanálise contribui para nutrir esses institutos com conteúdo teórico mais rico, fundamentado em compreensão do sujeito.
  • Há autores brasileiros que trabalham essa interface explícita, por exemplo Rodrigo da Cunha Pereira (“Direito de Família: Uma

Abordagem Psicanalítica”) que articula teoria psicanalítica (inconsciente, desejo, estrutura familiar) com normas, instituições e casos concretos.

  • Artigos acadêmicos também têm tratado da importância da escuta psicanalítica nos conflitos judicializados em família, da parentalização, da alienação parental, da judicialização das relações familiares.

4.  Benefícios esperados

  • Decisões mais humanizadas: ao considerar a subjetividade dos envolvidos, não apenas fatos objetivos, reduzindo o dano psicológico.
  • Prevenção de litígios extremos: através de mediação e da escuta, evitar que conflitos escalem ao ponto de causar dano irreparável.
  • Proteção da criança/adolescente como sujeito: reconhecendo seus vínculos, fantasias, receios, sofrimento; não apenas como objeto de disputa.
  • Melhora da mediação e da perícia psicológica/psicanalítica: fornecendo elementos teóricos para pareceres mais profundos, auxiliando o juiz a compreender o que está além dos registros comportamentais.
  • Promoção de pluralismo familiar: reconhecendo que há muitos modelos de família, e que o Direito de Família contemporâneo precisa acomodar essa pluralidade.

5.  Limites e desafios

  • Distinção entre peritos clínicos vs jurídicos: nem todo psicanalista está apto para atuar como perito; nem todo perito tem formação psicanalítica. A perícia exige critérios, metodologia, clareza, rigidez ética.
  • Risco de subjetivismo: A escuta psicanalítica pode ser acusada de subjetiva ou hermética. O desafio é tornar visível o que está sendo considerado, com clareza, para que possa ser avaliado no âmbito jurídico.
  • Tempo, custo, eficácia: intervenções profundas podem demandar muito tempo; juízes e partes podem buscar decisões rápidas.
  • Resistência institucional: cultura jurídica ainda privilegia provas objetivas, documentos, laudos padronizados; pode haver resistência a incorporar interpretações subjetivas.
  • Ética, sigilo e neutralidade: a psicanálise exige confidencialidade, cuidado com transferência, contratransferência; no contexto jurídico exigem65981bb9 8b31 44f5 8d4e b0954ac20142se cuidados extras para que não haja invasão ou excesso.

6.  Propostas para integração efetiva

Para que a psicanálise possa contribuir de fato no Direito de Família, algumas medidas práticas se mostram úteis:

  • Formação interdisciplinar: cursos de pósb8ecbd79 1394 474b bb83 e7a52ba6b17bgraduação ou especialização para advogados, juízes e operadores do Direito em psicanálise ou em aspectos clínicos da subjetividade.
  • Parcerias perito/perícia psicanalítica: criar rotinas em varas de família para que laudos psicológicos se beneficiem de fundamentações psicanalíticas, quando pertinente.
  • Mediação familiar com escuta qualificada: incorporar técnicas de escuta que reconheçam o inconsciente, os desejos, as fantasias, não apenas o “discurso racional”.
  • Clínica do Direito / Escritórios humanizados: espaços de atendimento jurídico especial onde, além da norma, se acolham os conflitos subjetivos, possibilitando que as partes sejam ouvidas mais integralmente. 
  • Produção acadêmica, pesquisas empíricas: estudos quantitativos e qualitativos sobre os resultados de decisões familiares que levaram em conta elementos subjetivos, comparação jurisprudencial, análise de laudos etc.
  • Sensibilização do Judiciário: juízes, desembargadores, ministros, promotores podem ser sensibilizados para a relevância da psicanálise através de seminários, pareceres, doutrina especializada.

7.  Caso de estudo ilustrativo (exemplo hipotético)

Para tornar concreto, imagine caso de disputa de guarda entre mãe e pai. O pai argumenta que a mãe é emocionalmente inconstante, mas apresenta provas circunstanciais inadequadas. A mãe, por sua vez, acusa o pai de evitar responsabilidades emocionais. A criança demonstra resistência em visitas, com sintomas de ansiedade.

  • Um laudo psicológico com respaldo psicanalítico poderia investigar mais que “comportamentos observáveis”: poderia levantar fantasias inconscientes da criança, identificar o que ela projeta sobre a mãe/pai, ouvir sua fala, traços de vínculo ou vinculações fantasiosas.
  • Em audiência ou mediação, um operador do direito sensibilizado permitiria que ambas as partes sejam ouvidas de modo a reconhecer seu sofrimento, não apenas defender interesses, evitando polarizações que prejudicam o melhor interesse da criança.
  • O juiz poderá tomar decisão de guarda mais equilibrada, com plano de convivência que leve em consideração estabilidade emocional, continuidade de vínculos, papel parental exercido, não só formalidades legais.

8.  Implicações práticas para advogados

  • Na elaboração de peças jurídicas: cuidar da narrativa/subjetividade, demonstrando não apenas fatos objetivos, mas também como afetam emocionalmente os envolvidos; usar linguagem que reconheça o sofrimento, vinculação afetiva.
  • Na escolha de peritos: escolher profissionais com capacidade de fundamentar seus laudos de maneira clinicamente sólida.
  • Na mediação ou conciliação: advogar pela escuta qualificada, propor mecanismos que incluam psicologia clínica ou psicanalítica nos processos de mediação.
  • Na argumentação de princípios constitucionais: apelar para dignidade, afetividade, melhor interesse da criança, direitos humanos, para dar peso ao reconhecimento da subjetividade.

9.  Conclusão

A psicanálise não substitui o Direito, nem pretende ditar decisões judiciais, mas oferece uma lente imprescindível para se aproximar da complexidade humana que está por trás dos litígios no Direito de Família. Ela permite humanizar as decisões, trazer à luz o que permanece oculto os desejos, fantasias, sofrimentos  que influenciam atos e relações. Integrar psicanálise ao direito de família significa não apenas interpretar normas, mas cuidar da vida psíquica dos envolvidos, especialmente dos mais vulneráveis: crianças e adolescentes. Esse olhar ampliado fortalece o Direito, tornando-o mais justo, sensível, realista.

Bibliografia recomendada

Aqui vão obras e artigos que podem servir de base teórica e prática:

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma Abordagem Psicanalítica. Forense, 1999. 

PEREIRA, Rodrigo da Cunha & GROENINGA, Giselle Câmara. Direito de Família e Psicanálise. Editora Imago, 2003. 

“Psicanálise e Direito de Família: uma interlocução necessária” — Iris Danielle de Araujo Santos; Betty Bernardo Fuks. 

“Direito de família e psicanálise: uma abordagem da alienação parental a partir das fórmulas quânticas da sexuação” — artigo de pós-doutorado na UVA (Universidade Veiga de Almeida). 

“Interfaces entre Direito de Família e Psicanálise” — Ligia Ziggiotti de Oliveira. 

“A família pela óptica psicanalítica” — Breno Valério Fausto de Medeiros; Raphael Valério Fausto de Medeiros. 

Freud, Sigmund — obras clássicas (ex.: O Ego e o Id, Totem e Tabu) para fundamentos teóricos. Kleinian literature / Lacaniana — especialmente no que toca estrutura e teoria da sexualidade; Melanie Klein sobre posições, fantasias, Lacan sobre linguagem, gozo, símbolo, lei

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site