A Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e a igualdade perante a lei (art. 5º, caput, CF/88) como princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito. Todavia, tais garantias permanecem desafiadas pela persistência de desigualdades históricas, especialmente no que tange às mulheres. A realidade social revela que, apesar da formalização jurídica de direitos fundamentais, o exercício pleno da cidadania feminina continua fragilizado, evidenciando a necessidade de uma proteção material e normativa efetiva. Nesse contexto, a misoginia, particularmente em sua manifestação digital, emerge como expressão contemporânea de dominação patriarcal e do ódio ao feminino, exigindo reflexão crítica e ação normativa robusta.
Historicamente, a condição jurídica da mulher no Brasil refletia normas civis e sociais que a colocavam em posição de subordinação. Até a edição do Código Civil de 1916, a mulher casada era legalmente considerada relativamente incapaz, sujeita à tutela do marido para a prática de atos civis essenciais como o trabalho. A autonomia econômica, política e educacional das mulheres foi conquistada apenas de forma gradual, muitas vezes restrita por fatores de classe, raça e inserção territorial, o que evidencia que a igualdade formal prevista em diplomas legais não se traduz automaticamente em igualdade substantiva, nos termos do art. 5º, caput, CF/88.
Hoje, as mulheres continuam a enfrentar barreiras simbólicas e estruturais, sendo julgadas por padrões de aparência, comportamento e obediência a normas patriarcais, onde desvios desses padrões são rapidamente punidos com rótulos depreciativos, reforçando uma lógica que define quais mulheres merecem voz e quais devem permanecer silenciadas.
A doutrina contemporânea em direito constitucional enfatiza que a efetividade do princípio da igualdade exige não só reconhecimento formal, mas sim de implementação de políticas públicas e mecanismos jurídicos que corrijam desigualdades históricas.
No espaço público e privado, a mulher continua submetida a constrangimentos que violam diretamente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia de gênero. Estereótipos de submissão e moderação de comportamento constituem discriminação indireta, restringindo direitos civis, políticos e sociais, e perpetuando desigualdades. Nesse sentido, a teoria da igualdade substancial, defendida por autores como Nogueira (2016), sustenta que a mera formalidade jurídica não é suficiente para a superação das desvantagens históricas em razão do patriarcado: é necessária a adoção de medidas compensatórias e de mecanismos de responsabilização para neutralizar os efeitos da discriminação estrutural.
O ambiente digital, longe de ser neutro, intensifica essas vulnerabilidades e amplifica a misoginia em suas múltiplas manifestações. Redes sociais e plataformas tecnológicas configuram veículos de práticas ilícitas, capazes de gerar efeitos concretos sobre a integridade moral, psicológica e social das mulheres, caracterizando, em muitos casos, ilícitos civis e penais previstos no Código Penal e em legislação específica, como a Lei nº 13.642/2018 (Lei Lola). A propagação de discursos misóginos, assédio moral digital e campanhas de difamação viola princípios constitucionais e gera responsabilidade civil objetiva e subjetiva, exigindo atuação coordenada do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos órgãos de fiscalização administrativa.
A socióloga Heleieth Saffioti, em O Poder do Macho (1987), demonstra como a masculinidade hegemônica impõe repressão de fragilidades, emoções e potencialidades masculinas, estabelecendo um padrão de autoridade que, quando não alcançado, é externalizado em violência contra mulheres. Atualmente, esse fenômeno se intensifica nas redes sociais, onde métricas de engajamento e padrões estéticos transformam a masculinidade em performance pública. Grupos como redpills e incels exemplificam como ressentimentos individuais se transformam em violência coletiva, promovendo discursos que reduzem mulheres a objetos e obstáculos à realização masculina (VALENGA, 2025). Essa dinâmica evidencia que a misoginia digital é extensão contemporânea do patriarcado, adaptando-se às tecnologias e explorando novas formas de dominação e controle social.
Do ponto de vista jurídico, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabeleceu princípios de neutralidade, privacidade e responsabilização limitada das plataformas digitais, condicionando a responsabilização civil à ordem judicial específica. Tal normatização, embora inovadora em seu tempo, revela-se insuficiente no hodierno diante da propagação massiva de conteúdos misóginos. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal flexibilizou esse entendimento, reconhecendo a responsabilidade das plataformas em casos graves e reiterados de conteúdo nocivo (BRASIL, STF, 2025). No entanto, persistem lacunas quanto à aplicação objetiva, fiscalização e mecanismos de reparação, demonstrando que a legislação precisa evoluir para enfrentar o fenômeno da misoginia digital de forma eficaz.
A Lei Lola (Lei nº 13.642/2018) representou avanço ao reconhecer a especificidade da violência de gênero online e ampliar a competência da Polícia Federal para investigação de crimes digitais contra mulheres. Entretanto, a aplicação prática dessa legislação enfrenta desafios, pois permanece limitada a tipos penais tradicionais, como injúria, difamação e ameaça, sem captar a dimensão coletiva e estrutural da misoginia digital.
Ainda que medidas recentes, como a proposta de endurecimento de penas para crimes de injúria com motivação misógina (BRASIL, SENADO, 2024), representem avanços, elas continuam a tratar a misoginia como ofensa pessoal, e não como crime coletivo que reforça desigualdades sociais. A criminalização sem mecanismos de fiscalização eficazes e sem responsabilização administrativa das plataformas corre o risco de reproduzir o padrão de ineficácia do direito penal tradicional, em que a lei existe, mas a proteção real das vítimas é limitada.
Em comparação, a Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989) e a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo demonstram que o ordenamento jurídico pode reconhecer a gravidade de determinadas formas de discriminação, o que ainda não ocorre de maneira equivalente em relação à misoginia apesar de apresentar semelhanças óbvias em termos de impacto social e estrutural.
A doutrina constitucional é clara ao afirmar que princípios como dignidade da pessoa humana, igualdade e vedação à discriminação impõem proteção robusta contra violações estruturais. A misoginia digital, que restringe direitos fundamentais, perpetua desigualdades históricas e compromete o exercício pleno da cidadania feminina, deve ser compreendida como crime coletivo. A ausência de tipificação penal específica e de mecanismos efetivos de responsabilização administrativa das plataformas evidencia falha normativa, em contraste com a gravidade do fenômeno e com a proteção constitucional da igualdade.
O enfrentamento da misoginia digital exige mais do que ajustes legislativos pontuais. Requer transformação normativa e cultural profunda, educação em direitos humanos, fiscalização rigorosa das plataformas digitais e ampliação da responsabilização judicial e administrativa. É imperativo reconhecer a misoginia como violação estrutural e coletiva, e não apenas como ofensa individual. Enquanto tal reconhecimento não ocorrer, as mulheres continuarão vulneráveis a ataques que minam sua dignidade, silenciando sua voz e reforçando a perpetuação de estereótipos e desigualdades.
O Direito, reflexo das relações sociais, ainda apresenta resistência em reconhecer a violência de gênero como uma questão coletiva e de grande relevância, não apenas privada. Contudo, a proteção jurídica das mulheres, especialmente no ambiente digital, não pode ser relegada a segundo plano. Romper com a lógica de subordinação e naturalização da misoginia é imperativo constitucional, social e ético. A efetividade dos princípios de dignidade, igualdade e liberdade depende de ação coordenada entre legislativo, executivo e judiciário, bem como da mobilização social e cultural, para que a igualdade substantiva deixe de ser um princípio teórico e se torne realidade concreta para todas as mulheres.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 abr. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 17 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.642, de 22 de janeiro de 2018. Dispõe sobre a investigação de crimes praticados contra mulheres na internet. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 22 jan. 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13642.htm. Acesso em: 17 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 5 jan. 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 17 set. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei nº 40/2025. Altera dispositivos para estabelecer penas mais severas para ofensas motivadas por misoginia. Senado Federal: Brasília, DF, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2482207. Acesso em: 17 set. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF define parâmetros para responsabilização de plataformas por conteúdos de terceiros. 2025. Disponível em:
https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-parametros-para-responsabilizacao-de-plataf ormas-por-conteudos-de-terceiros/. Acesso em: 17 set. 2025.
NOGUEIRA, Renzo Magno. A evolução da sociedade patriarcal e sua influência sobre a identidade feminina e a violência de gênero, 2016. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/48718/a-evolucao-da-sociedade-patriarcal-e-sua-influencia-sobre-aidentidade-feminina-e-a-violencia-de-genero. Acesso em: 16 set. 2025.
SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. VALENGA, Daniela. Red Pill, Incel e Sigma: conheça subculturas da machosfera. Santa Catarina: Catarinas, 2025. Disponível em: https://catarinas.info/red-pill-incel-e-sigma-conheca-subculturas-da-machosfera/. Acesso em: 17 set. 2025.
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