Jose Carlos da Silva Filho

O conceito de dignidade humana: fundamento absoluto ou construção histórica?

Postado em 01 de outubro de 2025 Por José Carlos Da Silva Filho Graduando em Direito pela (FICR). Atuou como presidente do DASEC/UFPE, integrou colegiado e departamento. Experiência em gestão, extensão e pesquisa. Bolsista na UFPE, estágios no TRT-6, UPE e Museu da Abolição. Atua em projetos de cultura, educação e justiça.

INTRODUÇÃO

A  dignidade  humana  ocupa,  atualmente,  uma  posição  central  nos  discursos  filosóficos,  jurídicos  e  políticos,  funcionando  como  uma  espécie  de  “valor  supremo”  que  orienta  legislações  nacionais,  tratados  internacionais  e  decisões  judiciais.  A  Constituição  Federal  de  1988,  por  exemplo,  consagra  a  dignidade  da  pessoa  humana  como  um  dos  fundamentos  da  República ( art. 1 º,  III),  atribuindo-lhe  caráter  estruturante  de  todo  o  ordenamento  jurídico.  Da  mesma  forma,  a  Declaração  Universal  dos  Direitos  Humanos  de 1948   proclama  no  seu  preâmbulo  que  “o  reconhecimento  da  dignidade  inerente  a  todos  os  membros  da  família  humana  e  de  seus  direitos  iguais  e  inalienáveis  constitui  o  fundamento  da  liberdade,  da  justiça  e da paz no mundo”.

Apesar  disso,  persiste  um  debate  fundamental:  a  dignidade  humana  é  um  fundamento  absoluto,  imutável  e  universal,  ou  é  uma  construção  histórica,  fruto  de  lutas  sociais  e  culturais?  Essa  questão  não  é  meramente  conceitual,  mas  afeta  a  forma  como  compreendemos  os  direitos  humanos,  a  interpretação  da  Constituição,  a  atuação  do  Judiciário  e  o  próprio  alcance da cidadania.

Neste  artigo,  defendemos  que  a  dignidade  deve  ser  vista  como  um  conceito  dialético: possui  um  núcleo  absoluto  mínimo,  indispensável  para  proteger  a  condição  humana  contra  arbitrariedades,  mas  é  também  construção  histórica,  aberta  a  ressignificações  e  expansões  que  acompanham as transformações sociais.

 DESENVOLVIMENTO

1.  O fundamento absoluto: herança jusnaturalista e kantiana

O  pensamento  jusnaturalista  sempre  buscou  identificar  princípios  universais  e  imutáveis,  válidos  independentemente  das  circunstâncias  históricas.  Nesse  horizonte,  a  dignidade  aparece  como  atributo  essencial  do ser  humano,  derivado  da  sua  racionalidade  e  liberdade.

Immanuel  Kant  é  a  principal  referência.  Para  ele,  o  ser  humano  é  dotado  de  valor  intrínseco,  distinto  de  qualquer  coisa  que  possua  preço.  Em  sua  Fundamentação  da  Metafísica  dos  Costumes,  afirma:  “No  reino  dos  fins,  tudo  tem  ou  um  preço,  ou  uma  dignidade.  Aquilo  que  tem  um  preço  pode  ser  substituído  por  algo  equivalente;  o  que  é  superior  a  todo  preço,  e,  portanto, não admite equivalente, tem dignidade” (KANT, 2011, p. 79).

Nessa  perspectiva,  a  dignidade  é  absoluta  porque  se  funda  na  própria  condição  racional  do  homem,  que  não  depende  de  circunstâncias  externas.  Trata-se  de  um  valor  inalienável, irrenunciável e universal.

Essa  concepção  influenciou  decisivamente  os  marcos  normativos  do  século  XX.  A  Declaração  Universal  dos  Direitos  Humanos  (1948)  não  se  limitou  a  estabelecer  direitos  específicos,  mas  colocou  a  dignidade  como  fundamento  ontológico  desses  direitos.  Da  mesma  forma,  a  Constituição  Federal  de  1988  elevou  a  dignidade  a  fundamento  da  República,  vinculando toda a ordem jurídica a esse princípio.

Juristas  como  Ingo  Wolfgang  Sarlet  defendem  o  caráter  absoluto  da  dignidade.  Para ele:

A  dignidade  da  pessoa  humana  é  qualidade  intrínseca  e  distintiva  de  cada  ser  humano  que  o  faz  merecedor  do  mesmo  respeito  e  consideração  por  parte  do  Estado  e  da  comunidade,  implicando  um  complexo  de  direitos  e  deveres  fundamentais  que  asseguram  a  pessoa  contra  todo  e  qualquer  ato  degradante  ou desumano. (Sarlet, 2012, p. 63).

Nesse  sentido,  a  dignidade  funciona  como  “valor-fonte”  do  direito,  limitando  o  poder  do Estado e estabelecendo parâmetros inegociáveis para a proteção da condição humana.

2.  As críticas: o mito do universal

Apesar  de  sua  força  normativa,  a  noção  de  dignidade  como  fundamento  absoluto  enfrenta  críticas.  A  primeira  delas  é  de  natureza  histórica:  a  ideia  de  dignidade  não  nasceu  como valor  universal,  mas  como  privilégio restrito.  Em  Roma,  dignitas  era qualidade  atribuída a magistrados e senadores, vinculada à posição social, não à humanidade em geral.

Somente  a  partir  do  humanismo  renascentista  e  da  filosofia  iluminista  é  que  a  noção  se  universalizou.  Ainda  assim,  esse  processo  esteve  permeado  por  exclusões.  A  Revolução  Francesa proclamava a igualdade e a dignidade, mas mantinha a escravidão nas colônias.

Michel  Foucault  chama  a  atenção  para  o  fato  de  que  conceitos  como  dignidade  e  direitos  humanos  são  sempre  atravessados  por  relações  de  poder:  “Os  direitos  humanos,  a  liberdade,  a  dignidade  —  todos  esses  universais  são  invocados,  mas  sua  utilização  e  sua  eficácia  estão  sempre  situadas  em  campos  de  luta,  de  estratégias  e  de  táticas”  (Foucault,  2008,  p. 184).

Assim,  a  invocação  de  um  fundamento  absoluto  pode  ocultar  interesses  específicos travestidos  de  universais.  O  perigo  está  em  naturalizar  aquilo  que  é,  na  realidade,  produto  de  disputas históricas.

3.  A dignidade como construção histórica

 Norberto  Bobbio  oferece  uma  alternativa  importante  ao  debate.  Para  ele,  os  direitos  humanos  —  e,  por  extensão,  a  dignidade  —  não  são  “descobertos”  como  verdades  naturais,  mas “construídos” historicamente. Em A Era dos Direitos, afirma:

Os  direitos  do  homem,  por  mais  fundamentais  que  sejam,  são  direitos  históricos,  ou  seja,  nascidos  em  certas  circunstâncias,  caracterizadas  por  lutas  em  defesa  de  novas  liberdades  contra  velhos  poderes,  e  nascidos  de  modo  gradual,  não  todos  de  uma  vez  e  nem  de  uma  vez  por  todas.  (Bobbio,  2004, p. 5).

Sob  essa  ótica,  a  dignidade  não  é  um  núcleo  imutável,  mas  um  horizonte  normativo  em  constante  expansão.  As  lutas  feministas,  os  movimentos  antirracistas,  a  pauta  LGBTQIA+,  a  defesa  dos  direitos  ambientais  e  da  proteção  animal  mostram  como  o  conteúdo  da dignidade é permanentemente ampliado.

Habermas  segue  linha  semelhante.  Em A  inclusão  do  outro,  destaca  que  a dignidade  só se concretiza em sociedades democráticas por meio do diálogo e do consenso. Para ele:

A  dignidade  da  pessoa  humana,  após  Auschwitz,  tornou-se  a  fonte  a  partir  da  qual  emana  o  conteúdo  dos  direitos  fundamentais.  Contudo,  esse  conteúdo  deve  ser  construído  discursivamente,  mediante  processos  de  deliberação  democrática.  (Habermas, 2002, p. 115).

A dignidade, portanto, não é apenas dada; é conquistada e reconhecida socialmente.

4.  Implicações práticas: entre o absoluto e o histórico

A  disputa  conceitual  entre  fundamento  absoluto  e  construção  histórica  tem  implicações concretas.

Se  vista  como  absoluta,  a  dignidade  funciona  como  limite  inegociável.  Isso  é  crucial  para  impedir  práticas  como  tortura,  escravidão,  experimentação  degradante,  genocídio  ou  racismo.  Em  julgamentos  do  Supremo  Tribunal  Federal,  como  o  que  reconheceu  a  união  homoafetiva,  a  dignidade  foi  invocada  como  argumento  central  para  afastar  qualquer  forma  de discriminação.

Se  vista  como  histórica,  a  dignidade  se  abre  para  novas  pautas  e  reivindicações.  Questões  como  a  autodeterminação  de  gênero,  os  direitos  digitais,  a  proteção  da  privacidade  e  os  impactos  da  inteligência  artificial  são  hoje  interpretados  como  desdobramentos  da  dignidade, ainda que não estivessem previstos nos marcos originais.

A  síntese  possível  está  em  reconhecer  um  núcleo  mínimo  absoluto  (proteção  contra  práticas  degradantes)  e  um  conteúdo  histórico  dinâmico  (abertura  a  novos  direitos  e  demandas). Essa visão evita tanto o risco do relativismo quanto o perigo do dogmatismo.

5.  Exemplos de ressignificação histórica

Bioética:  debates  sobre  eutanásia  e  aborto  revelam  que  a  dignidade  pode  ser  interpretada  tanto  para  proteger  a  vida  em  qualquer  circunstância  quanto  para  assegurar  autonomia sobre o próprio corpo.

Tecnologia:  a  proteção  de  dados  pessoais  (LGPD,  2018)  surge  como  nova expressão  da dignidade, voltada à preservação da identidade digital.

Meio  ambiente:  o  reconhecimento  de  direitos  da  natureza  e  das  gerações  futuras  amplia a dignidade para além do indivíduo, conectando-a à sustentabilidade.

Esses  exemplos  mostram  que,  sem  abrir  mão  de  um  núcleo  básico,  a  dignidade  se  reinventa em resposta aos desafios contemporâneos.

CONCLUSÃO

O  conceito  de  dignidade  humana  é,  simultaneamente,  fundamento  absoluto  e  construção  histórica.  Absoluto  porque  garante  um  núcleo  intangível  de  proteção  contra  práticas  desumanas,  funcionando  como  cláusula  pétrea  da  condição  humana.  Histórico  porque  seu  conteúdo  se  redefine  constantemente,  fruto  de  lutas  sociais,  transformações  culturais e avanços tecnológicos.

Negar  o  caráter  absoluto  seria  abrir  espaço  para  relativizações  perigosas,  que  poderiam justificar  violações  graves.  Negar  o  caráter  histórico  seria  engessar  o  conceito,  impedindo  sua  capacidade de responder a novos desafios.

Portanto,  a  melhor  síntese  consiste  em  compreender  a  dignidade  como  forma  absoluta,  mas  conteúdo  histórico:  um  valor  universal  em  sua  essência,  mas  plural  e  dinâmico  em  suas  concretizações.  Essa  compreensão  reforça  seu  papel  de  fundamento  do  direito,  sem  reduzi-lo  a uma abstração estática.

A  dignidade  humana,  afinal,  é  ao  mesmo  tempo,  herança  filosófica  e  conquista  histórica; é memória do sofrimento passado e promessa de um futuro mais justo.

REFERÊNCIAS

OBBIO, Norberto.  A Era dos Direitos . Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL.  Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 . Brasília, DF: Senado  Federal, 1988.

FOUCAULT, Michel.  Segurança, território, população . São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, Michel.  Vigiar e Punir . Petrópolis: Vozes, 2009.

HABERMAS, Jürgen.  A inclusão do outro . São Paulo: Loyola, 2002.

KANT, Immanuel.  Fundamentação da Metafísica dos Costumes . Lisboa: Edições 70, 2011.

ONU.  Declaração Universal  dos Direitos Humanos ,  1948.

SARLET, Ingo Wolfgang.  A eficácia dos direitos fundamentais . Porto Alegre: Livraria do  Advogado, 2012.

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