A dignidade humana ocupa, atualmente, uma posição central nos discursos filosóficos, jurídicos e políticos, funcionando como uma espécie de “valor supremo” que orienta legislações nacionais, tratados internacionais e decisões judiciais. A Constituição Federal de 1988, por exemplo, consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República ( art. 1 º, III), atribuindo-lhe caráter estruturante de todo o ordenamento jurídico. Da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 proclama no seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
Apesar disso, persiste um debate fundamental: a dignidade humana é um fundamento absoluto, imutável e universal, ou é uma construção histórica, fruto de lutas sociais e culturais? Essa questão não é meramente conceitual, mas afeta a forma como compreendemos os direitos humanos, a interpretação da Constituição, a atuação do Judiciário e o próprio alcance da cidadania.
Neste artigo, defendemos que a dignidade deve ser vista como um conceito dialético: possui um núcleo absoluto mínimo, indispensável para proteger a condição humana contra arbitrariedades, mas é também construção histórica, aberta a ressignificações e expansões que acompanham as transformações sociais.
DESENVOLVIMENTO
O pensamento jusnaturalista sempre buscou identificar princípios universais e imutáveis, válidos independentemente das circunstâncias históricas. Nesse horizonte, a dignidade aparece como atributo essencial do ser humano, derivado da sua racionalidade e liberdade.
Immanuel Kant é a principal referência. Para ele, o ser humano é dotado de valor intrínseco, distinto de qualquer coisa que possua preço. Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, afirma: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço, ou uma dignidade. Aquilo que tem um preço pode ser substituído por algo equivalente; o que é superior a todo preço, e, portanto, não admite equivalente, tem dignidade” (KANT, 2011, p. 79).
Nessa perspectiva, a dignidade é absoluta porque se funda na própria condição racional do homem, que não depende de circunstâncias externas. Trata-se de um valor inalienável, irrenunciável e universal.
Essa concepção influenciou decisivamente os marcos normativos do século XX. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) não se limitou a estabelecer direitos específicos, mas colocou a dignidade como fundamento ontológico desses direitos. Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 elevou a dignidade a fundamento da República, vinculando toda a ordem jurídica a esse princípio.
Juristas como Ingo Wolfgang Sarlet defendem o caráter absoluto da dignidade. Para ele:
A dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa contra todo e qualquer ato degradante ou desumano. (Sarlet, 2012, p. 63).
Nesse sentido, a dignidade funciona como “valor-fonte” do direito, limitando o poder do Estado e estabelecendo parâmetros inegociáveis para a proteção da condição humana.
Apesar de sua força normativa, a noção de dignidade como fundamento absoluto enfrenta críticas. A primeira delas é de natureza histórica: a ideia de dignidade não nasceu como valor universal, mas como privilégio restrito. Em Roma, dignitas era qualidade atribuída a magistrados e senadores, vinculada à posição social, não à humanidade em geral.
Somente a partir do humanismo renascentista e da filosofia iluminista é que a noção se universalizou. Ainda assim, esse processo esteve permeado por exclusões. A Revolução Francesa proclamava a igualdade e a dignidade, mas mantinha a escravidão nas colônias.
Michel Foucault chama a atenção para o fato de que conceitos como dignidade e direitos humanos são sempre atravessados por relações de poder: “Os direitos humanos, a liberdade, a dignidade — todos esses universais são invocados, mas sua utilização e sua eficácia estão sempre situadas em campos de luta, de estratégias e de táticas” (Foucault, 2008, p. 184).
Assim, a invocação de um fundamento absoluto pode ocultar interesses específicos travestidos de universais. O perigo está em naturalizar aquilo que é, na realidade, produto de disputas históricas.
Norberto Bobbio oferece uma alternativa importante ao debate. Para ele, os direitos humanos — e, por extensão, a dignidade — não são “descobertos” como verdades naturais, mas “construídos” historicamente. Em A Era dos Direitos, afirma:
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (Bobbio, 2004, p. 5).
Sob essa ótica, a dignidade não é um núcleo imutável, mas um horizonte normativo em constante expansão. As lutas feministas, os movimentos antirracistas, a pauta LGBTQIA+, a defesa dos direitos ambientais e da proteção animal mostram como o conteúdo da dignidade é permanentemente ampliado.
Habermas segue linha semelhante. Em A inclusão do outro, destaca que a dignidade só se concretiza em sociedades democráticas por meio do diálogo e do consenso. Para ele:
A dignidade da pessoa humana, após Auschwitz, tornou-se a fonte a partir da qual emana o conteúdo dos direitos fundamentais. Contudo, esse conteúdo deve ser construído discursivamente, mediante processos de deliberação democrática. (Habermas, 2002, p. 115).
A dignidade, portanto, não é apenas dada; é conquistada e reconhecida socialmente.
A disputa conceitual entre fundamento absoluto e construção histórica tem implicações concretas.
Se vista como absoluta, a dignidade funciona como limite inegociável. Isso é crucial para impedir práticas como tortura, escravidão, experimentação degradante, genocídio ou racismo. Em julgamentos do Supremo Tribunal Federal, como o que reconheceu a união homoafetiva, a dignidade foi invocada como argumento central para afastar qualquer forma de discriminação.
Se vista como histórica, a dignidade se abre para novas pautas e reivindicações. Questões como a autodeterminação de gênero, os direitos digitais, a proteção da privacidade e os impactos da inteligência artificial são hoje interpretados como desdobramentos da dignidade, ainda que não estivessem previstos nos marcos originais.
A síntese possível está em reconhecer um núcleo mínimo absoluto (proteção contra práticas degradantes) e um conteúdo histórico dinâmico (abertura a novos direitos e demandas). Essa visão evita tanto o risco do relativismo quanto o perigo do dogmatismo.
Bioética: debates sobre eutanásia e aborto revelam que a dignidade pode ser interpretada tanto para proteger a vida em qualquer circunstância quanto para assegurar autonomia sobre o próprio corpo.
Tecnologia: a proteção de dados pessoais (LGPD, 2018) surge como nova expressão da dignidade, voltada à preservação da identidade digital.
Meio ambiente: o reconhecimento de direitos da natureza e das gerações futuras amplia a dignidade para além do indivíduo, conectando-a à sustentabilidade.
Esses exemplos mostram que, sem abrir mão de um núcleo básico, a dignidade se reinventa em resposta aos desafios contemporâneos.
O conceito de dignidade humana é, simultaneamente, fundamento absoluto e construção histórica. Absoluto porque garante um núcleo intangível de proteção contra práticas desumanas, funcionando como cláusula pétrea da condição humana. Histórico porque seu conteúdo se redefine constantemente, fruto de lutas sociais, transformações culturais e avanços tecnológicos.
Negar o caráter absoluto seria abrir espaço para relativizações perigosas, que poderiam justificar violações graves. Negar o caráter histórico seria engessar o conceito, impedindo sua capacidade de responder a novos desafios.
Portanto, a melhor síntese consiste em compreender a dignidade como forma absoluta, mas conteúdo histórico: um valor universal em sua essência, mas plural e dinâmico em suas concretizações. Essa compreensão reforça seu papel de fundamento do direito, sem reduzi-lo a uma abstração estática.
A dignidade humana, afinal, é ao mesmo tempo, herança filosófica e conquista histórica; é memória do sofrimento passado e promessa de um futuro mais justo.
OBBIO, Norberto. A Era dos Direitos . Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
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HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro . São Paulo: Loyola, 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes . Lisboa: Edições 70, 2011.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos , 1948.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
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