O Outubro Rosa se tornou um símbolo mundial de conscientização sobre o câncer de mama. As campanhas e os laços cor de rosa lembram a importância da prevenção e do diagnóstico precoce. Mas por trás da cor, existem histórias que a fita definitivamente não alcança. O rosa, tradicionalmente associado a certos estereótipos de gênero, chama atenção, mas também lembra os padrões que tentam dizer à mulher como ela “deveria” viver ou lidar com a doença. O câncer de mama atravessa corpos, relações e estruturas sociais, e, muitas vezes, revela a violência que já habita os lares, intensificando-se diante da vulnerabilidade.
Nesse contexto, é impossível ignorar como, para muitos homens, a mulher ainda é vista como objeto de prazer, reduzida ao corpo. Quando uma parte desse corpo é retirada, como a mama, marcada como símbolo da feminilidade, muitas deixam de ser reconhecidas em sua inteireza e passam a ser tratadas como se não servissem mais. Essa lógica cruel do machismo estrutural ajuda a explicar por que tantas enfrentam abandono ou rejeição quando mais precisariam de apoio.
As violências contra mulheres com câncer de mama não nascem do nada: elas são frutos de um sistema patriarcal que molda a forma como os corpos femininos são vistos e tratados. Como bem lembra Bell Hooks, o patriarcado tem como arma mais poderosa convencer as mulheres de que suas dores são apenas pessoais, e não resultado de um sistema de dominação. Portanto, pensar o outubro Rosa sem esse olhar crítico é ignorar que a dor das mulheres não é individual, mas coletiva, resultado de uma estrutura que insiste em reduzi-las e violentá-las.
É preciso ressaltar que não são casos isolados, infelizmente a violência sofrida pelas mulheres durante o tratamento de câncer é real e precisa ser discutida. Uma reportagem recente apontou que 70% das mulheres em tratamento de câncer de mama no Brasil são abandonadas pelos parceiros, revelando o impacto brutal da doença sobre as relações conjugais e a vulnerabilidade feminina. Esse dado expõe como o câncer torna a violência de gênero ainda mais visível.
A cantora Preta Gil, ao falar sobre sua experiência com o câncer, revelou não apenas as marcas físicas do tratamento, mas também o peso emocional e a solidão que o acompanharam. Sua história, conhecida nacionalmente, deu visibilidade à realidade silenciosa de tantas outras mulheres que vivem situações parecidas, sem voz ou espaço para serem ouvidas. Ao quebrar o silêncio, ela mostrou que a violência pode ser física, psicológica, patrimonial, emocional ou simbólica, e todas deixam cicatrizes que o laço rosa não consegue mostrar. Muitas vezes, o rosa romantiza a luta, querendo pintar as mulheres como guerreiras, como as que foram feitas para aguentar, enquanto são silenciadas, abandonadas e têm direitos negados.
Essas experiências mostram que o caminho da cura vai muito além do tratamento físico: é também social, político e de reconhecimento de direitos. Quando a violência vem justamente de quem deveria proteger, como o companheiro, a mulher se encontra em situação de dupla vulnerabilidade, enfrentando a doença e a negação de sua segurança e dignidade. Esse cenário evidencia a urgência de olhar para a proteção legal da mulher e para a responsabilidade daqueles que deveriam zelar por sua integridade, abrindo espaço para o debate sobre medidas jurídicas que garantam a efetivação de seus direitos.
Se por um lado o Outubro Rosa ilumina monumentos e distribui fitas, por outro lado ainda são invisibilizadas as mulheres que, em meio ao diagnóstico de câncer de mama, vivenciam abandono e violência de gênero. Essa invisibilidade reforça o que a filósofa Djamila Ribeiro nos lembra em Pequeno Manual Antirracista: “a ausência de um olhar interseccional nas políticas públicas perpetua desigualdades e silencia dores específicas”. Aqui, a dor não é apenas do tumor, mas da rejeição e da solidão forçada.
Como advogadas, não podemos deixar de apontar que a Constituição Federal assegura, no artigo 6º, a saúde como direito social fundamental. O abandono da mulher em tratamento não é uma mera questão privada, mas um problema de violação de direitos humanos. O Estado, a família e a sociedade são corresponsáveis pela proteção, como dispõe o artigo 226, §8º da Constituição, que prevê a assistência à família na pessoa de cada um dos seus integrantes, inclusive na proteção contra a violência. Quando um parceiro abandona uma mulher nesse contexto, é preciso nomear: trata-se de violência doméstica e de gênero, e pode ser enquadrada na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que reconhece a violência psicológica, moral, patrimonial e até a negligência como formas de agressão.
Além disso, o Código Civil estabelece o dever de mútua assistência entre os cônjuges e companheiros. O descumprimento desse dever não deve ser naturalizado, pois gera responsabilidade jurídica. Cabe à mulher, com apoio jurídico e institucional, pleitear medidas de proteção, pensões alimentícias, indenizações por danos morais e patrimoniais, além de medidas urgentes de afastamento do agressor quando houver risco. O Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública são portas de acesso a essas garantias, que precisam ser efetivamente aplicadas e divulgadas.
É imprescindível reconhecer que essas mulheres não precisam apenas de remédios, mas também de amparo jurídico e político. Mais uma vez utilizando as lentes da escritora Bell Hooks, ao discutir as relações afetivas em All About Love (Tudo Sobre o Amor), lembra que o cuidado é um ato político e que a ausência dele revela as estruturas de opressão que sustentam a desigualdade de gênero. Quando o abandono recai sobre mulheres em tratamento, fica evidente que o machismo não se restringe à violência física: ele se manifesta também na negligência e na recusa de estar presente no momento em que mais se necessita de solidariedade.
O caminho, portanto, é coletivo. Movimentos feministas, organizações de pacientes oncológicas e órgãos de proteção à mulher precisam unir forças para exigir que o Outubro Rosa não seja apenas marketing, mas política pública de enfrentamento à vulnerabilidade. Isso significa ampliar a rede de casas de apoio, garantir acompanhamento multidisciplinar pelo SUS, fomentar campanhas que não romantizem a dor, mas denunciem a violência, e exigir que o sistema de justiça trate cada caso como prioritário.
Nós, enquanto advogadas, reforçamos que nenhuma mulher deve enfrentar o câncer sozinha. A Justiça existe para assegurar sua dignidade e responsabilizar aqueles que a violentam ou abandonam. O rosa que se ilumina nas ruas e campanhas precisa se transformar em luz real dentro dos tribunais, nos lares e nas políticas públicas. Como nos lembra as filósofas Simone de Beauvoir e Djamila Ribeiro, “o silêncio nunca foi uma opção para as mulheres que ousaram existir”. Que este Outubro Rosa seja um grito por dignidade, por cuidado integral e por justiça.
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