A alienação parental é, sem dúvida, um dos temas mais sensíveis e controversos do Direito de Família contemporâneo. A criação da Lei nº 12.318/2010 representou, à época, um marco na tentativa de coibir práticas que comprometem a convivência familiar e o desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes. No entanto, como acontece com quase toda legislação que se propõe a regular relações humanas profundamente complexas, sua aplicação prática revelou virtudes, mas também fragilidades e riscos de distorções graves.
O objetivo deste texto não é negar a existência da alienação parental nem minimizar seus danos, mas sim problematizar a forma como o fenômeno vem sendo tratado juridicamente e socialmente no Brasil, apontando tanto os avanços que a lei trouxe quanto as preocupações legítimas que ela desperta.
Não é possível ignorar que a alienação parental existe e causa prejuízos concretos. Casos reais mostram crianças que, em razão de manipulação sistemática por parte de um dos genitores, passam a rejeitar o outro sem motivo legítimo, internalizando narrativas que distorcem a realidade. O dano psicológico é profundo e, muitas vezes, irreversível.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar o direito à convivência familiar, o que inclui preservar vínculos com ambos os pais. A alienação parental, nesse sentido, viola frontalmente um direito fundamental.
O mérito da Lei 12.318/2010 foi reconhecer a alienação parental como prática ilícita e estabelecer medidas de intervenção, desde advertências até a inversão da guarda. Antes dela, o Judiciário lidava com o tema de forma difusa e, muitas vezes, tímida, deixando vítimas sem amparo efetivo.
Apesar dos avanços, há um problema central: a prova. A alienação parental não é algo que se detecta com um exame laboratorial ou uma perícia técnica simples. Ela é, por natureza, subjetiva, e seus sinais podem se confundir com reações legítimas da criança diante de situações adversas.
O risco é claro: uma alegação de alienação parental pode ser utilizada de forma estratégica para fragilizar o outro genitor, inclusive em contextos de violência doméstica. A linha que separa a legítima proteção de um filho contra um agressor e a prática de alienação parental pode ser tênue e nebulosa.
A lei prevê perícia psicológica ou biopsicossocial, mas a qualidade dessas perícias varia enormemente. Em alguns tribunais, há equipes multidisciplinares capacitadas e experientes; em outros, a análise é terceirizada a profissionais que não necessariamente possuem formação especializada na complexidade da dinâmica familiar conflituosa.
Uma das críticas mais contundentes à Lei 12.318/2010 é o potencial de uso abusivo para neutralizar denúncias de abuso sexual ou violência doméstica. Imagine-se uma mãe que, diante de sinais de abuso praticado pelo pai, decide suspender temporariamente o contato. Caso o pai ingresse judicialmente alegando alienação parental, a mãe poderá ser punida, e até ter a guarda revertida, se não conseguir provar de imediato a violência alegada.
O que está em jogo é um grave risco de inversão de papéis: o agressor se coloca no papel de vítima, e a vítima se torna ré. Essa distorção não é teórica; há relatos documentados e decisões judiciais que levantam sérias dúvidas sobre a prudência de algumas medidas.
Em 2018, por exemplo, o Projeto de Lei nº 498 foi apresentado para revogar a Lei de Alienação Parental, sob a justificativa de que a norma estaria sendo usada para enfraquecer denúncias legítimas de violência. O projeto gerou forte polarização: de um lado, movimentos feministas e de proteção à infância; de outro, grupos que defendem a manutenção da lei como mecanismo essencial de preservação do vínculo paterno.
A guarda compartilhada, consagrada na Lei nº 13.058/2014, foi pensada como um antídoto para a alienação parental, equilibrando o poder decisório e o tempo de convivência. Na teoria, a lógica é irrefutável: se ambos os pais participam ativamente, reduz-se o espaço para manipulações.
Na prática, porém, a guarda compartilhada pode se tornar um campo de batalha permanente quando não há mínima cooperação entre os genitores. A imposição judicial da guarda compartilhada em contextos de alta litigiosidade pode, paradoxalmente, aumentar o conflito e expor a criança a uma rotina de tensão constante.
É preciso reconhecer que a guarda compartilhada não é panaceia. Sem diálogo, sem respeito e sem suporte psicológico, ela não apenas falha em prevenir a alienação parental, como pode intensificar o ambiente tóxico no qual a criança vive.
O Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que a alienação parental configura abuso moral contra o menor e viola direitos fundamentais. No REsp 1.159.242/SP, a Ministra Nancy Andrighi afirmou que “a alienação parental é prática que viola direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar saudável, constituindo abuso moral e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental”.
Esse reconhecimento é importante para dar peso jurídico ao tema. No entanto, é igualmente relevante observar que, em alguns casos, o Judiciário aplicou medidas drásticas – como inversão de guarda – com base em indícios frágeis ou perícias superficiais.
O problema não é a lei em si, mas a falta de critérios uniformes na sua aplicação, o que gera insegurança jurídica e pode levar a decisões precipitadas e injustas.
Uma das maiores fragilidades na aplicação da Lei 12.318/2010 está na formação dos operadores do Direito e dos profissionais envolvidos nas perícias. Identificar alienação parental exige conhecimento aprofundado de psicologia infantil, dinâmica familiar e comportamento humano.
Não basta ao juiz ou ao promotor conhecer o texto legal; é preciso compreender a lógica da manipulação emocional e distinguir um afastamento legítimo (motivação protetiva) de um afastamento induzido (motivação alienante). A ausência dessa qualificação leva a decisões que, em vez de proteger, perpetuam o dano.
O próprio Conselho Nacional de Justiça já recomendou a ampliação de equipes multidisciplinares, mas essa estrutura ainda está longe de ser realidade na maior parte do país.
O combate à alienação parental não pode ser confundido com uma lógica puramente punitiva. O objetivo primário deve ser restaurar o vínculo saudável da criança com ambos os pais, não simplesmente punir o alienador. A inversão da guarda, por exemplo, pode ser necessária em casos extremos, mas deve ser medida de último recurso, precedida de tentativas efetivas de mediação e acompanhamento psicológico.
Infelizmente, o Judiciário brasileiro, por vezes, recorre a soluções rápidas para problemas complexos, aplicando sanções sem um processo gradual de reaproximação. Isso é contraproducente, porque a criança, no centro do conflito, acaba sendo mais uma vez deslocada e desestabilizada.
A alienação parental é um fenômeno real e danoso, que merece combate firme e consistente. Negar sua existência seria fechar os olhos para o sofrimento de inúmeras crianças. Por outro lado, aplicar a lei de forma acrítica, sem considerar o contexto e sem respaldo técnico robusto, é igualmente perigoso.
A solução passa por três eixos fundamentais:
A Lei nº 12.318/2010 foi um passo importante, mas não é intocável. O debate sobre seus aprimoramentos – ou mesmo sobre uma eventual reformulação – deve ser feito com seriedade, ouvindo juristas, psicólogos, assistentes sociais, pais, mães e, sobretudo, aqueles que foram crianças no epicentro dessa disputa.
Seja qual for o caminho, o centro de gravidade precisa permanecer no mesmo ponto: o melhor interesse da criança e do adolescente, como determina a Constituição. Qualquer interpretação ou aplicação da lei que se afaste desse núcleo ético e jurídico estará, inevitavelmente, condenada ao fracasso.
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