“O quanto de você há naquilo que você tanto odeia?” Essa frase, frequentemente atribuída a Sigmund Freud, não aparece literalmente em seus textos. Mas ela resume, com uma precisão quase dolorosa, um dos conceitos mais interessantes que a psicanálise nos oferece: a projeção. A ideia é simples e, ao mesmo tempo, profundamente inquietante. Nós projetamos no outro aquilo que não suportamos ver em nós mesmos. Aquela raiva desproporcional, aquele julgamento moral implacável, aquele ódio visceral que sentimos por certas pessoas pode estar revelando mais sobre quem somos do que sobre quem condenamos.
Quando olhamos para o modo como nossa sociedade trata criminosos, essa pergunta se torna ainda mais urgente. Por que odiamos tanto? Por que exigimos penas cada vez mais severas? Por que o debate sobre segurança pública parece movido mais por vingança do que por justiça? A psicanálise pode nos ajudar a entender que, talvez, estejamos projetando nossa própria sombra — aquela parte rejeitada de nós mesmos — nos corpos daqueles que escolhemos punir.
QUANDO O OUTRO VIRA ESPELHO
Todos nós temos impulsos que consideramos inaceitáveis. Agressividade, inveja, desejos egoístas, fantasias destrutivas. A maioria de nós não age conforme esses impulsos, mas eles existem. E precisam ir para algum lugar. Freud chamou isso de mecanismo de defesa: o ego se protege atribuindo ao outro aquilo que não tolera em si mesmo. É o que Ricardo Salztrager, em texto sobre projeção na psicanálise, explica de forma direta: fazemos com que pareça que são os outros que possuem características ou desejos que, na verdade, são nossos.
Carl Jung ampliou essa ideia com o conceito de sombra. Para ele, a sombra é tudo aquilo que negamos em nossa personalidade — não apenas os impulsos ruins, mas também potenciais não desenvolvidos, aspectos que simplesmente não cabem na imagem que fazemos de nós mesmos. E Jung era enfático: toda sombra negada será projetada. Se não reconhecemos nossa incompletude, vamos enxergar no outro tudo aquilo que recusamos ver em nós.
O problema é que isso não acontece apenas individualmente. Sociedades inteiras funcionam assim. Quando um grupo precisa se sentir moralmente íntegro, ele encontra alguém para carregar o peso de sua sombra coletiva. É o fenômeno do bode expiatório: escolhemos determinadas pessoas ou grupos, colocamos neles toda a culpa, e nos sentimos reconciliados com nossos próprios padrões morais. É um mecanismo antigo, brutal e ainda muito presente.
O INIMIGO QUE CONSTRUÍMOS
No Direito Penal brasileiro, esse mecanismo ganha contornos institucionais. O discurso punitivista, aquele que exige mais prisões, penas mais longas, tratamento mais duro, prospera porque oferece alvos convenientes para nossa projeção coletiva, moldando a opinião publica, criando o chamado populismo penal. O “criminoso” vira a encarnação de tudo que rejeitamos em nós mesmos. E quanto mais o desumanizamos, mais fácil fica justificar qualquer nível de violência contra ele.
Günther Jakobs, jurista alemão, formalizou essa lógica em sua teoria do direito penal do inimigo. Para Jakobs, certos indivíduos representam perigo permanente e não deveriam ter as mesmas garantias que os cidadãos. Ele dividiu o mundo entre nós e eles, entre quem merece direitos e quem merece apenas repressão. É a expressão jurídica perfeita da projeção: construímos o “inimigo” não só pelos seus atos, mas porque ele representa simbolicamente tudo que nossa sociedade rejeita e precisa expurgar.
O problema? Essa escolha de quem será o inimigo nunca é aleatória!
QUEM ESCOLHEMOS ODIAR
No Brasil, o sistema penal é seletivo. Não é segredo. Pobres, negros e jovens de periferia estão sobrerrepresentados nas prisões. Não porque cometam mais crimes, mas porque o sistema foi desenhado para puni-los com mais frequência e mais severidade. Estudos sobre racismo estrutural mostram que, para o mesmo crime, negros recebem penas maiores. A seletividade não é falha — é funcionalidade.
Isso nos leva de volta à projeção. Se todos temos impulsos destrutivos, por que alguns viram criminosos e outros não? A resposta tem menos a ver com os atos em si e mais com quem os comete. Cesare Lombroso, no século XIX, inventou a teoria do “criminoso nato” — a ideia de que certas pessoas nasciam para o crime e que isso podia ser identificado por características físicas. Como observa Paulo Roberto Ceccarelli, psicanalista e professor, Lombroso deu verniz científico à criminalização de determinados corpos, especialmente corpos negros. Essa lógica nunca nos abandonou completamente.
O sistema penal funciona como um espelho: reflete não a criminalidade real, mas aquilo que a sociedade escolheu projetar. E escolhemos projetar nossa sombra naqueles que historicamente construímos como “Outros”. O encarceramento em massa da população negra e pobre não é acidente. É o bode expiatório funcionando em escala industrial.
A CULPA QUE BUSCAMOS ALIVIAR
Há outro aspecto perturbador nisso tudo. Freud, em 1916, escreveu sobre “criminosos por sentimento de culpa” — pessoas que cometem crimes para serem punidas, porque sofrem de uma culpa inconsciente anterior ao ato. A punição alivia essa culpa ao dar a ela um motivo concreto.
Mas e se a sociedade funciona do mesmo jeito? E se exigimos punição não para reparar o dano, mas para aplacar nossa própria culpa coletiva? Marie Bonaparte, psicanalista do círculo íntimo de Freud, fez essa pergunta em 1927, ao analisar um caso de infanticídio. Ela questionou: “Não seria a justiça dos homens, no fundo, uma vingança dos homens?” E foi além: a insistência na pena de morte, por exemplo, não seria a última forma que nos resta de derramar sangue impunemente em tempos de paz? E fazemos isso com o sangue do criminoso — justamente aquele que, no fundo, encarna os impulsos recalcados que todos evitamos reconhecer.
A pena, nesse sentido, vira ritual. Não de justiça, mas de expiação. Ao punir com severidade, a coletividade se absolve simbolicamente de suas próprias tendências destrutivas. É o que Nietzsche descreveu em sua Genealogia da Moral como ressentimento: uma vingança moral contra o mundo, onde o “não” ao outro se torna fundamento da própria identidade. O discurso punitivista brasileiro carrega essa estrutura: nega direitos ao criminoso para afirmar sua própria retidão moral.
RESPONSABILIDADE SEM VINGANÇA
A psicanálise não propõe que absolvamos criminosos alegando que eles são determinados pelo inconsciente. Jacques Lacan, em texto de 1950 sobre as funções da psicanálise em criminologia, foi claro: todo sujeito é responsável por seus atos. Mas a responsabilidade subjetiva é diferente da culpabilidade moral que usamos para justificar vingança.
Franz Alexander e Hugo Staub, em O Criminoso e Seus Juízes (1928) — obra que influenciou profundamente Lacan —, argumentaram que criminoso e justiça formam o mesmo arranjo que neurose e sintoma: crime e expiação se alimentam mutuamente. Eles disseram algo ainda mais radical: a avaliação da pena e sua execução “formam verdadeiros teatros que servem apenas para a satisfação dos afetos”. Em outras palavras, punimos não para proteger a sociedade, mas para satisfazer nossas próprias necessidades psíquicas.
Melanie Klein, pioneira da psicanálise infantil, ofereceu outra perspectiva crucial em 1927. Segundo Klein, todos nós, quando crianças, temos fantasias sádicas primitivas. O criminoso não seria alguém radicalmente diferente — seria alguém que reproduz essas fantasias que todos carregamos. Para ela, o criminoso possui um superego extremamente cruel e busca no mundo exterior uma punição que o liberte dessa tirania interna. Se Klein está certa, a diferença entre nós e os criminosos que tanto odiamos é muito menor do que gostaríamos de admitir.
O QUE FAZER COM ESSE CONHECIMENTO?
Alexander e Staub escreveram: “Só se poderá tratar o criminoso cientificamente e com sentimento de justiça quando a comunidade renunciar, no que diz respeito ao tratamento do criminoso, à satisfação de três afetos: expiação, represálias e recompensa pelo sadismo socialmente inibido”. É uma exigência difícil. Significa renunciar ao prazer da vingança, ao conforto da projeção, à ilusão de que somos radicalmente diferentes daqueles que condenamos.
Mas é necessário. Porque o sistema penal não pode ser teatro para rituais de expiação psíquica. Não pode ser instrumento de satisfação de afetos coletivos. E, principalmente, não pode continuar operando como mecanismo de seleção racial e social, escolhendo bodes expiatórios para carregar a sombra que nos recusamos a reconhecer.
Reconhecer os mecanismos psíquicos que alimentam o punitivismo não significa negar a necessidade de responsabilização penal. Significa, sim, exigir vigilância constante contra a seletividade, contra a desumanização do condenado, contra a instrumentalização do direito para fins de controle social. Significa, sobretudo, sermos capazes de olhar para o criminoso sem projetar nele toda a sombra que não queremos ver em nós mesmos.
O quanto de nós há em nosso ódio aos criminosos? Essa pergunta deveria estar em cada decisão judicial, em cada proposta de lei, em cada discurso que clama por “justiça” disfarçando vingança. Porque aquilo que não reconhecemos em nós insiste em retornar — se não pela consciência, pelo sintoma social. E o punitivismo seletivo brasileiro, com sua marca racial e de classe, é sintoma eloquente de uma sociedade que ainda não teve coragem de olhar para sua própria sombra.
Talvez seja hora de começarmos.
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