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STF e a Era Digital: Está o guardião da constituição preparado para os algoritmos?

Postado em 01 de novembro de 2025 Por Endrio Vinícius Rodrigues da Silva  Natural de Nazaré da Mata, tec. em administração, tem interesse em Direito politico e suas implicações.Por José Carlos Da Silva Filho  Graduando em Direito na (FICR). Atuou como estagiário no TRT6, UPE, UFPE e FADE, pesquisa nas áreas de Direito constitucional, penal, trabalho, necropolítica e comportamento organizacional, é bolsista CNPq.

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea vivencia uma transição acelerada para a era digital, em que dados, plataformas e algoritmos moldam interações sociais, relações de consumo e até mesmo processos democráticos. Como observa Shoshana Zuboff (2019), entramos no “capitalismo de vigilância”, modelo econômico em que informações pessoais se transformam em mercadoria e instrumento de controle social. Nesse cenário, direitos fundamentais como privacidade, liberdade de expressão e igualdade passam a ser testados em dimensões inéditas, exigindo uma resposta institucional robusta.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) ocupa posição central nesse debate. A Constituição de 1988, em seu artigo 102, atribuiu ao tribunal a função de “guardar a Constituição”, o que implica não apenas a defesa do texto constitucional, mas também a interpretação de seus princípios diante de novas realidades. Como lembra Luís Roberto Barroso (2021), a Constituição deve ser lida como um “organismo vivo”, que se atualiza para garantir sua força normativa em contextos de transformação.

Como observa Jürgen Habermas (2003), a esfera pública só pode cumprir seu papel democrático se houver condições mínimas de racionalidade comunicativa e igualdade de acesso. No entanto, a lógica algorítmica pode criar assimetrias de informação que fragilizam esse ideal deliberativo. Manuel Castells (2009) acrescenta que a sociedade em rede concentra poder em nós tecnológicos e comunicacionais, o que desafia a neutralidade da democracia representativa.

A ascensão dos algoritmos e da inteligência artificial traz ao STF um desafio inédito: como proteger direitos fundamentais diante de decisões automatizadas, opacas e potencialmente discriminatórias? Como assegurar a integridade do processo democrático em meio à disseminação de desinformação em massa e à manipulação algorítmica do debate público? Tais questões não são apenas jurídicas, mas também políticas, éticas e tecnológicas, exigindo do tribunal um diálogo constante com a sociedade e com especialistas de múltiplas áreas.

Assim, o presente artigo busca refletir se o STF, enquanto guardião da Constituição, está preparado para enfrentar os desafios da era digital. A análise parte da atuação da Corte em casos concretos — como o Inquérito das Fake News — e dialoga com experiências internacionais, destacando os riscos e as potencialidades da intervenção judicial diante do poder invisível dos algoritmos.

1. O STF e sua função constitucional

A Constituição de 1988 conferiu ao STF papel singular na consolidação do Estado Democrático de Direito. O artigo 102 define que compete ao tribunal “guardar a Constituição”, missão que vai além da aplicação da lei, exigindo a interpretação de princípios constitucionais diante das novas realidades sociais.

A história recente confirma essa centralidade. O tribunal decidiu sobre uniões homoafetivas (ADPF 132 e ADI 4277), criminalização da homofobia (ADO 26), além de questões, envolvendo fake news, redes sociais e liberdade de expressão. Como aponta Sarmento (2019), “a Constituição deve ser interpretada de maneira evolutiva, sob pena de se tornar irrelevante diante das transformações da sociedade”.

O papel contramajoritário do STF, como lembra Alexander Bickel (1962), consiste em atuar quando as maiorias políticas violam direitos fundamentais. Esse mesmo dilema se apresenta na era digital, em que maiorias virtuais — potencializadas por algoritmos — podem silenciar minorias. Assim como a Suprema Corte dos Estados Unidos, o STF precisa lidar com o desafio de interpretar direitos fundamentais em novos contextos, mas no Brasil esse papel se intensifica pela ausência de uma legislação digital consolidada.

Se já era desafiador no plano analógico, o papel de guardião da Constituição torna-se mais complexo na era digital, marcada por fluxos de informação instantâneos e decisões automatizadas com impacto direto nos direitos fundamentais.

2. Algoritmos: o novo poder invisível

Os algoritmos, sobretudo aqueles baseados em inteligência artificial, ocupam espaço decisivo nas relações sociais contemporâneas. Eles influenciam desde a recomendação de conteúdos em plataformas digitais até concessão de crédito, recrutamento e monitoramento de segurança pública.

O caso norte-americano COMPAS tornou-se exemplo emblemático. Trata-se de um software usado para prever reincidência criminal, acusado de reproduzir vieses raciais, punindo de forma desproporcional pessoas negras (ANGWIN et al., 2016). Esse episódio expõe a chamada “caixa-preta algorítmica”, expressão popularizada por Frank Pasquale (2015) para descrever a opacidade de sistemas cujos critérios decisórios são desconhecidos até mesmo por seus desenvolvedores.

Pesquisadores brasileiros como Ronaldo Lemos (2020) alertam que o uso indiscriminado de algoritmos pode reforçar desigualdades históricas, reproduzindo preconceitos raciais, de gênero e classe. Além disso, estudos de Virgílio Almeida e Danilo Doneda (2018) demonstram que a falta de explicabilidade nos sistemas de IA compromete o princípio constitucional da publicidade e dificulta o controle social sobre decisões automatizadas.

No Brasil, embora o uso de inteligência artificial em políticas públicas e no Judiciário esteja em estágio inicial, cresce a pressão para que essas ferramentas sejam adotadas. O risco é que decisões automatizadas, tomadas sem transparência, reforcem desigualdades históricas ou violem direitos fundamentais sem que os cidadãos tenham mecanismos eficazes de contestação. Cabe ao STF, nesses casos, definir parâmetros constitucionais que garantam a proteção contra discriminações algorítmicas.

3. STF, liberdade de expressão e plataformas digitais

A atuação do STF no Inquérito das Fake News (Inq. 4781) é talvez o exemplo mais marcante de sua inserção no debate digital. Embora criticado por seu procedimento, o inquérito buscou enfrentar a desinformação organizada, reconhecendo que ataques virtuais em massa podem corroer a democracia.

Segundo Fachin (2020), “a desinformação é a antítese do pluralismo democrático, pois manipula a formação da vontade política”. O tribunal, nesse sentido, assume não apenas o papel de julgador, mas de protetor da esfera pública digital.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos já reconheceu, no caso Delfi AS v. Estonia (2015), que plataformas digitais podem ser responsabilizadas por conteúdos ofensivos ou ilícitos quando deixam de agir com a devida diligência. Essa linha de entendimento reforça a ideia de que a liberdade de expressão não é absoluta, devendo ser equilibrada com a proteção contra abusos e manipulações digitais.

Contudo, surgem dilemas: até que ponto a moderação de conteúdos fere a liberdade de expressão? É competência do STF fixar parâmetros de moderação algorítmica ou tal tarefa cabe ao Legislativo? A ausência de legislação específica faz com que o tribunal ocupe espaço que deveria resultar de debate democrático no Congresso.

4. Democracia digital e responsabilidade algorítmica

Um dos maiores riscos da era digital é a manipulação da opinião pública por meio de algoritmos. A segmentação de anúncios políticos, a criação de bolhas informacionais e a disseminação de notícias falsas afetam diretamente o processo eleitoral.

Cass Sunstein (2018) alerta que a arquitetura digital molda escolhas e preferências sem que o indivíduo perceba, fenômeno que ameaça a autonomia da vontade. Esse poder invisível das plataformas exige resposta institucional.

A União Europeia avançou com a Lei de Serviços Digitais (DSA) e com o AI Act, que estabelecem critérios de transparência e responsabilidade para algoritmos. No Brasil, o PL 2630/2020 (Fake News) ainda não foi aprovado, e os debates sobre regulação da inteligência artificial seguem incipientes.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) já estabelece princípios de transparência e não discriminação que podem orientar a análise constitucional dos algoritmos. Além disso, países da América Latina, como o Chile, avançam na inclusão do direito à proteção de dados pessoais diretamente em sua Constituição, o que evidencia uma tendência regional de constitucionalização da governança digital (CAVALLI, 2022).

Enquanto isso, cabe ao STF fixar parâmetros constitucionais que assegurem equilíbrio entre inovação e proteção de direitos.

5. STF preparado para os algoritmos?

A resposta envolve reconhecer avanços e limitações. O STF já demonstrou sensibilidade aos riscos da era digital, promovendo audiências públicas e julgando temas de grande impacto. Essa abertura ao diálogo interdisciplinar é um passo importante.

Entretanto, a Corte ainda carece de mecanismos permanentes de assessoria técnica multidisciplinar, capazes de oferecer suporte em temas de alta complexidade tecnológica. Sem isso, corre o risco de decidir de forma insuficiente ou tecnicamente limitada.

Outro desafio é a judicialização excessiva. Diante da falta de legislação, muitos conflitos digitais chegam ao STF, concentrando nas mãos de onze ministros decisões que afetam milhões de usuários. Gilmar Mendes (2017) chama esse fenômeno de “supremocracia”, uma hipertrofia do poder judicial que pode gerar tensões institucionais.

CONCLUSÃO

O Supremo Tribunal Federal, ao assumir a missão de “guardar a Constituição”, foi concebido para ser um tribunal da estabilidade institucional. Entretanto, a era digital coloca o STF diante de uma tensão inédita: ser, ao mesmo tempo, guardião da tradição constitucional e intérprete das inovações disruptivas que alteram radicalmente a vida em sociedade.

Não se trata apenas de julgar casos envolvendo redes sociais ou sistemas de inteligência artificial. Trata-se de compreender que os algoritmos, como lembra Pasquale (2015), se tornaram a “sociedade da caixa-preta”, influenciando silenciosamente escolhas econômicas, sociais e políticas. O STF, portanto, não pode permanecer neutro ou inerte diante de um poder invisível que desafia os princípios da legalidade, da igualdade e da publicidade.

Se em tempos analógicos a Constituição já exigia atualização hermenêutica constante, no contexto digital essa exigência se torna imperativo de sobrevivência democrática. Como observa Barroso (2021), “a Constituição é um organismo vivo”, e cabe ao STF manter sua força normativa diante das novas formas de violação de direitos que emergem na esfera digital. A proteção da privacidade, da liberdade de expressão e da isonomia ganha novos contornos quando a manipulação algorítmica pode definir quais vozes são ouvidas e quais permanecem silenciadas.

É verdade que a Corte já deu sinais de sensibilidade, como na condução do Inquérito das Fake News (Inq. 4781) e em audiências públicas que abriram espaço para especialistas. Esses passos demonstram disposição para enfrentar o fenômeno. No entanto, são insuficientes se não houver institucionalização de estruturas permanentes de assessoramento técnico, capazes de oferecer aos ministros subsídios sólidos em temas de inteligência artificial, ciência de dados e ética digital. Sem essa base, há o risco de decisões bem-intencionadas, mas tecnicamente frágeis.

Além disso, é preciso refletir sobre o risco de uma “supremocracia digital” (MENDES, 2017), em que onze ministros passam a decidir sobre praticamente todo conflito que envolve plataformas e algoritmos, em razão da omissão do Legislativo. O STF precisa equilibrar protagonismo com autocontenção, de modo a não substituir o debate político democrático, mas sim estimulá-lo. Um tribunal constitucional deve atuar como garantidor de princípios, não como regulador solitário de tecnologias.

A experiência internacional oferece caminhos úteis. A União Europeia, com o Digital Services Act e o AI Act, demonstra que é possível avançar em regulação democrática da era digital. O Tribunal Constitucional alemão, por sua vez, já consolidou práticas de diálogo interdisciplinar ao recorrer sistematicamente a relatórios técnicos em casos de privacidade e tecnologia. O Brasil pode e deve se inspirar nessas práticas, adaptando-as às suas peculiaridades institucionais.

Diante desse cenário, estar preparado para os algoritmos significa:

  1. Reconhecer a não neutralidade tecnológica, tratando os algoritmos como agentes sociais que podem violar direitos;
  2. Exigir transparência e explicabilidade, para que decisões automatizadas não sejam blindadas de escrutínio judicial;
  3. Consolidar diálogo interdisciplinar, integrando especialistas de diversas áreas ao processo decisório constitucional;
  4. Evitar a judicialização excessiva, estimulando o Legislativo a assumir seu papel regulatório;
  5. Reafirmar princípios constitucionais, como dignidade da pessoa humana, pluralismo político e privacidade, como parâmetros inegociáveis da democracia digital.

Em síntese, não basta ao STF aplicar a Constituição tal como concebida em 1988; é necessário reinterpretá-la para permanecer viva na era digital. Isso implica criar canais institucionais de diálogo interdisciplinar, estabelecer parâmetros normativos mínimos e pressionar os demais Poderes a assumir responsabilidade no debate regulatório. Como destaca Morozov (2018), a tecnologia nunca é neutra: é expressão de escolhas políticas e econômicas. Logo, cabe ao STF garantir que tais escolhas estejam subordinadas aos valores constitucionais, e não ao contrário.

O futuro da democracia brasileira dependerá, em parte, da capacidade do STF de compreender os riscos e as potencialidades da revolução algorítmica. Se a Corte for capaz de atuar com prudência, coragem e abertura ao diálogo, poderá transformar a era digital em oportunidade de fortalecimento da cidadania e da Constituição de 1988. Caso contrário, corremos o risco de que os algoritmos, guiados por interesses privados transnacionais e opacos, assumam papel de intérpretes invisíveis da realidade social — substituindo, de forma ilegítima, o guardião da Constituição.

Em última análise, a pergunta que dá título a este artigo não pode ser respondida de forma definitiva. O STF está em processo de preparação, com avanços e fragilidades. O que se pode afirmar, contudo, é que a inércia não é opção. A era digital exige do tribunal não apenas a defesa da Constituição, mas a reinvenção de sua própria atuação como instituição central do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Virgílio; DONEDA, Danilo. Algoritmos e discriminação: desafios e propostas. Revista de Direito Administrativo, v. 278, p. 75-98, 2018.

ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff; MATTU, Surya; KIRCHNER, Lauren. Machine Bias. ProPublica, 2016.

BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1962.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

CAVALLI, Cecilia. El derecho a la protección de datos personales en las constituciones latinoamericanas. Revista Latinoamericana de Derecho y Tecnología, v. 7, n. 2, p. 45-68, 2022.

FACHIN, Luiz Edson. Democracia, direito e fake news. São Paulo: RT, 2020.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

LEMOS, Ronaldo. Direito, tecnologia e sociedade: desafios do século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional e política: entre supremocracia e democracia. São Paulo: Saraiva, 2017.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.

PASQUALE, Frank. The Black Box Society: The Secret Algorithms That Control Money and Information. Harvard University Press, 2015.

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

SUNSTEIN, Cass R. #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton University Press, 2018.

ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. New York: PublicAffairs, 2019.

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