Ao se falar em corrupção no Brasil, é comum que o imaginário coletivo a associe imediatamente a grandes escândalos envolvendo empresas públicas e a administração estatal. Casos amplamente divulgados pela mídia consolidaram a percepção de que a corrupção é um fenômeno intrinsecamente ligado ao setor público. No entanto, essa visão é parcial. A criminalidade empresarial também se manifesta com força no setor privado, por meio de práticas como lavagem de dinheiro, suborno, fraudes contábeis, má governança, desvio de ativos, violação de dados e condutas antiéticas de colaboradores e gestores.
Esses ilícitos privados, ainda que muitas vezes despercebidos pela opinião pública, geram impactos econômicos e sociais significativos, comprometendo a concorrência leal, a confiança nos mercados e a estabilidade das instituições. A corrupção corporativa não se limita à relação empresa-Estado; ela pode ocorrer entre particulares, corroendo a integridade das relações comerciais e a ética nos negócios.
Diante desse cenário, surge o compliance criminal como resposta técnica e institucional ao desafio de prevenir e mitigar riscos penais empresariais. Mais do que um instrumento burocrático, trata-se de um modelo de gestão de integridade, sustentado por controles internos, políticas corporativas e cultura organizacional voltada à legalidade e à ética.
1. O conceito e a função preventiva do compliance criminal
O compliance criminal, especificamente, refere-se às medidas internas destinadas a prevenir, detectar e reagir a condutas que possam configurar ilícitos penais, como corrupção, fraude, lavagem de dinheiro ou crimes financeiros. Não se limita à proteção da pessoa jurídica, abrange também a prevenção da responsabilidade penal de seus dirigentes e administradores, consolidando o que a doutrina denomina cultura da responsabilidade penal empresarial.
Rogério Sanches Cunha define o instituto como “o conjunto de ações e planos adotados por pessoas jurídicas para garantir que cumpram as exigências legais e éticas de seu setor, evitando e remediando adequadamente fraudes e atos de corrupção”. Em linha semelhante, Saad-Diniz sustenta que o compliance criminal constitui uma política de prevenção da criminalidade empresarial, incorporando mecanismos de controle interno e incentivos ao cumprimento de deveres de colaboração com o Estado.
2. Fundamentação normativa e alcance jurídico no Brasil
A Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) introduziu a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por atos lesivos contra a administração pública e previu, em seu artigo 7º, inciso VIII, que a existência de programas de integridade efetivos é fator atenuante na aplicação de sanções. Trata-se, portanto, de reconhecimento legal expresso do valor preventivo do compliance.
Já a Lei nº 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro) impõe deveres de identificação de clientes, manutenção de registros e comunicação de operações suspeitas, reforçando a obrigação das empresas de implementar controles internos.
O artigo 13, §2º, do Código Penal também serve de fundamento, ao dispor que a omissão é penalmente relevante quando o agente “podia e devia agir para evitar o resultado”. É com base nesse dispositivo que se discute a responsabilidade penal do compliance officer, profissional encarregado de supervisionar o cumprimento das normas de integridade. Contudo, sua responsabilização somente é admissível quando possui dever jurídico e meios efetivos para agir, não se confundindo com uma responsabilidade objetiva ou automática.
Por sua vez, o Projeto de Lei nº 455/2016, ainda em tramitação, propõe tipificar a corrupção privada no Código Penal, estendendo o alcance repressivo para o âmbito empresarial. A tendência legislativa, portanto, é de ampliar o espectro de criminalização das condutas corporativas e consolidar o compliance como instrumento de defesa institucional.
3. O compliance criminal e a governança corporativa
O compliance não é apenas um conjunto de regras, mas uma estrutura viva de governança, que exige comprometimento da alta direção (tone at the top), treinamentos periódicos, canais de denúncia, due diligence de terceiros e políticas claras de sanção disciplinar. A efetividade do programa depende da sua aderência à cultura organizacional e da sua capacidade de responder a riscos reais.
A doutrina de Klaus Tiedemann denomina esse fenômeno de “cultura da responsabilidade penal empresarial”, na qual a empresa deixa de ser mero objeto da persecução penal e se converte em sujeito ativo de prevenção. Essa mudança de paradigma reflete a evolução do Direito Penal Econômico, que passa a atuar não apenas de forma reativa, mas preventiva e estratégica.
A consolidação do compliance criminal implica o fortalecimento de uma cultura de autocontrole corporativo. Ao implantar políticas de integridade, a empresa demonstra boa-fé objetiva, diligência e compromisso com a ética, elementos que podem servir como atenuantes em eventual responsabilização. O compliance criminal, portanto, não é apenas uma ferramenta de proteção, é expressão de maturidade institucional e de cidadania corporativa.
Conclusão
Os escândalos de corrupção envolvendo grandes estatais projetaram a imagem de que o crime econômico é um problema restrito ao setor público. Todavia, a realidade empresarial demonstra que a corrupção e os ilícitos corporativos também prosperam no setor privado, exigindo mecanismos próprios de controle e responsabilização.
O resultado esperado é a redução da exposição penal e reputacional, a proteção do patrimônio e da marca e a criação de valor sustentável, fatores essenciais para empresas que pretendem competir em ambientes regulatórios rigorosos e mercados globalizados.
A efetividade do compliance, entretanto, não depende apenas de regulamentos, mas de comprometimento institucional e mudança de mentalidade. Empresas que incorporam a integridade como valor estratégico não apenas se protegem de sanções, mas constroem confiança, atraem investimentos e contribuem para a consolidação de um ambiente empresarial mais ético, competitivo e sustentável.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Lei de prevenção à lavagem de dinheiro.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Lei Anticorrupção.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
CUNHA, Rogério Sanches; SOUZA, Renée do Ó. Compliance Penal. São Paulo: JusPodivm, 2022.
PAIVA PENTEADO, Breno. A importância do compliance sob a ótica do Direito Penal empresarial. Migalhas, São Paulo, 24 abr. 2024.
TIEDEMANN, Klaus. Empresarial Criminal Law and Corporate Responsibility. Freiburg: Nomos Verlag, 2013.
SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance e Direito Penal: fundamentos de política criminal empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
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