Vivemos um tempo em que parte significativa de quem somos está armazenada em dispositivos, servidores e plataformas digitais. Perfis em redes sociais, contas em bancos digitais, fotos em nuvem, bibliotecas em aplicativos de leitura, assinaturas de streaming, criptomoedas, canais monetizados e dados de valor inestimável compõem hoje o que se convencionou chamar de “patrimônio digital”. No entanto, ao contrário do que ocorre com bens físicos, esse patrimônio encontra-se em uma zona cinzenta quanto à sua sucessão, enfrentando barreiras jurídicas, éticas e operacionais.
A ausência de legislação específica no ordenamento jurídico brasileiro sobre a herança digital revela o descompasso entre o avanço tecnológico e o Direito. O Código Civil, ao tratar da sucessão (art. 1.784), limita-se ao acervo tradicional, analógico, e não contempla expressamente os bens digitais. Diante disso, a transmissão sucessória desses ativos depende de interpretações extensivas, muitas vezes insatisfatórias ou conflitantes, criando incerteza jurídica e vulnerabilidade para herdeiros e titulares.
Neste cenário, surge uma necessidade urgente: planejar a herança digital com base em estratégias que contemplem tanto aspectos legais quanto operacionais. É justamente aqui que o pensamento computacional se revela uma ferramenta promissora para enfrentar esse desafio.
Frequentemente confundido com programação, o pensamento computacional é, na verdade, uma habilidade cognitiva que permite analisar e resolver problemas complexos com base em técnicas da ciência da computação, como decomposição, reconhecimento de padrões, abstração e elaboração de algoritmos. Aplicá-lo ao Direito — e, em especial, à sucessão digital — é não apenas possível, como desejável.
Imagine, por exemplo, o processo de organizar um plano sucessório digital. A primeira etapa seria a decomposição: dividir o problema em partes menores, identificando os diversos tipos de ativos digitais (financeiros, afetivos, operacionais etc.), as plataformas envolvidas e as possíveis consequências jurídicas. Em seguida, o reconhecimento de padrões ajudaria a identificar semelhanças entre contas e categorias de bens, facilitando a padronização de estratégias. A abstração permitiria concentrar esforços naquilo que é juridicamente relevante, filtrando excessos e focando no núcleo do problema: a transmissibilidade segura e eficaz. Por fim, a criação de um algoritmo jurídico — isto é, um conjunto de instruções claras para o titular e seus sucessores — viabilizaria um plano de ação racional e eficiente.
A aplicação do pensamento computacional permite, inclusive, dialogar melhor com os próprios sistemas e plataformas. Já é possível encontrar serviços que permitem a nomeação de “herdeiros digitais” ou que automatizam o encerramento ou a entrega de dados mediante apresentação de certidão de óbito. Mas esses mecanismos ainda são pontuais e, muitas vezes, limitados por cláusulas contratuais ou políticas de privacidade que ignoram o ordenamento jurídico local.
Dessa forma, o planejamento sucessório da herança digital não deve se restringir à nomeação de herdeiros em testamento. É fundamental prever, desde já, como garantir o acesso legítimo a senhas, criptografias, contratos de adesão e direitos personalíssimos envolvidos. Trata-se de uma nova dimensão da autonomia da vontade, em que o testador pode determinar o destino não apenas de seu patrimônio tangível, mas também da sua identidade digital.
Ao trazer a perspectiva do pensamento computacional para essa seara, contribui-se para a formação de um novo tipo de operador do Direito: mais estratégico, interdisciplinar e apto a enfrentar os desafios da era digital. Da mesma forma, educa-se o cidadão para refletir sobre o próprio legado, não apenas como algo material, mas como uma extensão da sua presença no mundo — que continua, de alguma forma, mesmo após sua morte.
Em síntese, a herança digital exige planejamento jurídico, mas também organização lógica e sistemática. Mais do que adaptar o Direito à tecnologia, é hora de utilizar a tecnologia — e sua forma de pensar — para transformar o Direito. Afinal, no mundo dos algoritmos, planejar a sucessão digital é um ato de necessidade.
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.