A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma de separação de Poderes no Brasil. Diferentemente do modelo clássico de freios e contrapesos, que almejava harmonia e independência entre os Poderes, o ordenamento brasileiro passou a permitir — e até encorajar — o protagonismo do Poder Judiciário. Nas últimas décadas, consolidou-se no país o fenômeno da judicialização da política, que, embora inicialmente voltado à proteção de direitos fundamentais, tem se estendido para o campo da regulação institucional e da produção normativa.
Inclusive, diversos estudiosos apontam que a ampliação do poder institucional do Judiciário é característica comum em democracias jovens ou em processo de consolidação, nas quais os demais Poderes enfrentam dificuldades de articulação ou baixa legitimidade social[1]. Nesse contexto, a atuação judicial tende a ocupar espaços deixados pela omissão legislativa ou pela ineficiência da política institucional, funcionando como um mecanismo de contenção de incertezas e conflitos. Essa expansão é especialmente perceptível nas questões que envolvem o sistema político e partidário, onde a instabilidade das regras do jogo e os interesses concorrentes levam à crescente judicialização de disputas eleitorais e à transferência da regulação normativa para a esfera dos tribunais superiores.
Nessa perspectiva, a Justiça Eleitoral vem representando um dos maiores símbolos dessa transformação. Dotada de competências jurisdicionais, administrativas e normativas, ela passou a ocupar uma posição de centralidade na organização do processo políticoeleitoral. O caso da Súmula nº 73 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)[2], aprovada em 16 de maio de 2024, cerca de dois meses antes do início da campanha regular, é um exemplo emblemático dessa expansão institucional do judiciário no jogo eleitoral.
A referida súmula fixou critérios objetivos para a caracterização da fraude à cota de gênero, disciplinando elementos que configuram candidaturas fictícias, tais como votação zerada ou inexpressiva, ausência de atos de campanha e falta de movimentação financeira relevante. Essa medida foi uma resposta para um problema real e crescente, tendo em vista a multiplicação de candidaturas laranjas registradas apenas para cumprir formalmente o percentual mínimo de 30% previsto no art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97. Porém, essa resposta revela também uma falha legislativa e, principalmente, um desequilíbrio institucional entre os Poderes.
Surge, então, a reflexão: por que foi o TSE, e não o Congresso Nacional, o responsável por estabelecer os critérios objetivos de identificação da fraude de cota de gênero? Ocorre que a resposta é simples, embora preocupante, uma vez que o Parlamento tem sido passivo institucionalmente. Apesar das sucessivas decisões judiciais sobre o tema desde as eleições de 2016, não houve qualquer movimento efetivo do Legislativo para detalhar legalmente o que configura fraude à cota de gênero, tampouco para prever suas sanções de maneira clara e objetiva. Diante dessa inércia, o Judiciário, mais uma vez, ocupou o espaço deixado vago.
Ao fazê-lo, o TSE não apenas interpretou a norma existente — ele a complementou com conteúdo normativo próprio, atuando, na prática, como um legislador sobre as regras eleitorais. Com isso, reforça-se o modelo de regulação judicial do processo eleitoral brasileiro, em que atos com força normativa — muitas vezes irrevisíveis — são tomados por um tribunal superior composto em parte por ministros indicados pelo Executivo e pelo Judiciário, sem representação popular direta.
O Legislativo, ao se omitir, não apenas renuncia a sua função típica, mas abre espaço para que decisões de impacto eleitoral e democrático sejam tomadas por instâncias não eleitas, sem qualquer representatividade popular. Portanto, mais do que criticar o Judiciário por avançar, é preciso responsabilizar, ao mesmo tempo, o Parlamento por recuar, contribuindo para o desequilíbrio entre os Poderes e para a hipertrofia normativa da Justiça Eleitoral.
Esse modelo praticado pela Justiça Eleitoral pode até ser funcional em termos de resposta institucional, mas não está isento de riscos estruturais. Não se trata de criticar a jurisprudência do TSE, que cumpre o papel de uniformizar interpretações. A preocupação central trazida neste artigo está no fato de que a Súmula nº 73 do TSE estabeleceu, com força vinculante, critérios objetivos para configurar fraude à cota de gênero, cuja consequência direta é a anulação da chapa partidária e a invalidação dos votos exercidos — o que interfere diretamente no exercício da cidadania. Ou seja, esse tipo de construção normativa, mesmo diante da omissão legislativa, representa um deslocamento preocupante do eixo da deliberação democrática para o centro decisório judicial.
Por conseguinte, a Súmula 73 do TSE ilustra mais do que uma resposta jurídica a um problema político: ela explicita o esvaziamento das funções normativas do Parlamento e o fortalecimento de um Judiciário que atua, simultaneamente, como juiz, regulador e legislador. Essa concentração de funções, por mais bem-intencionada que seja, compromete o princípio da separação de Poderes e a legitimidade democrática do exercício legislativo.
Concluo, como advogado e membro da OAB/PE, que é indispensável reafirmar o papel do Parlamento como locus legítimo da produção normativa eleitoral. A atuação do Poder Judiciário, especialmente da Justiça Eleitoral, deve ser respeitada e reconhecida em sua função garantidora da ordem jurídica. Todavia, não se pode ignorar que o protagonismo excessivo do Judiciário na definição de critérios com efeitos diretos sobre o sufrágio popular evidencia um vácuo político que compromete a soberania legislativa e fragiliza a autonomia dos demais Poderes.
Nesse processo, corre-se o risco de transformarmos o garantismo constitucional em governo de juízes, o que é incompatível com o ideal republicano. Cabe à advocacia, enquanto força constitucionalmente vocacionada à defesa da cidadania, fomentar o debate público qualificado, pressionar por reformas legislativas consistentes e zelar para que o equilíbrio entre os Poderes seja restaurado — não por conveniência institucional, mas por compromisso com a democracia representativa.
[1] YADAV, Vineeta; MUKHERJEE, Bumba. Democracy, Electoral Systems, and Judicial Empowerment in Developing Countries. University of Michigan Press, 2014.
[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Súmula nº 7. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/sumulas/sumulas-do-tse/sumula-tse-n-73. Acesso em: 4 mai. 2025.
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