A percepção de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é uma “ofensa” ou um entrave, especialmente entre as novas gerações, é um sintoma alarmante de uma profunda transformação na natureza do trabalho e da economia. Longe de ser um simples desprezo juvenil, essa visão reflete a precarização imensa do trabalho formal após reformas como a de 2017, e a ascensão de um sistema que o economista Yanis Varoufakis denomina tecnofeudalismo. Sob a égide desse novo “feudalismo digital”, o “empreendedorismo” é romantizado como sinônimo de sucesso e liberdade, enquanto na realidade oculta a ausência de direitos trabalhistas fundamentais que beneficiam a elite econômica e os “senhores tecnofeudais”.
O tecnofeudalismo, segundo Varoufakis, marca o fim do capitalismo como o conhecíamos. Nele, mercados são substituídos por plataformas digitais que operam como “feudos das grandes tecnologias”, e o lucro cede lugar à pura extração de rendas – a chamada “renda-nuvem”. As Big Techs, ou “cloudalistas”, detêm o “capital nuvem” e o poder de destruir negócios de “vassalos capitalistas” com um clique. Essa lógica, de acordo com Cédric Durand, baseia-se na monopolização do “gleba digital” – dados, algoritmos e infraestrutura – criando uma dependência abstrata e algorítmica das plataformas.
A ascensão da gig economy, exemplificada por plataformas como Uber, ilustra essa dinâmica. Essas empresas se apresentam como meras intermediárias digitais, evitando a responsabilidade empregatícia e a aplicação da CLT. No entanto, os trabalhadores por aplicativo estão submetidos a uma parassubordinação, onde a plataforma define preços, impõe termos, monitora e restringe a comunicação, caracterizando uma concorrência desleal. Embora a formalização como Microempreendedor Individual (MEI) ofereça alguns benefícios previdenciários, ela não garante direitos essenciais como FGTS ou seguro-desemprego, deixando esses trabalhadores em condições precárias. A narrativa de que o trabalho formal é “ultrapassado” e a plataformização é a “resposta” é um verniz de sucesso e liberdade para a exploração.
A crença de que a perda de liberdade e a hierarquia são consequências inevitáveis da complexidade social é um mito. David Graeber e David Wengrow, em ‘O Despertar de Tudo’, refutam a narrativa evolucionista linear, demonstrando que a história humana é um caleidoscópio de novas possibilidades. Eles argumentam que a humanidade sempre teve a capacidade de decidir conscientemente sobre nossas formas de organização política. Sociedades complexas existiram sem hierarquias rígidas ou perda de liberdade, e povos antigos experimentaram diversas formas de organização social, mostrando que flexibilidade, criatividade e liberdade são qualidades duradouras das sociedades humanas.
Essa perspectiva nos leva a entender que a atual configuração tecnofeudal, embora poderosa, é um Leviatã frágil, não um destino inalterável. A rejeição da CLT, que se manifesta em um contexto de desencanto e precarização, deve ser vista como um chamado urgente à ação para reverter esse cenário.
Nesse contexto de rápidas transformações, o advogado desempenha um papel central e multifacetado na adaptação e atualização das aplicações da CLT, e na construção de novas garantias para os trabalhadores:
* Reconhecimento de Vínculos Trabalhistas: Advogados são cruciais na identificação e comprovação dos elementos de subordinação em trabalhos intermediados por plataformas. A despeito da maioria negativa da jurisprudência brasileira para trabalhadores de aplicativos, decisões em outros países, como o caso ‘Uber v. Aslam et al.’ no Reino Unido, que reconheceu motoristas como ‘workers’ com direitos a férias e salário-mínimo, podem inspirar o direito comparado brasileiro. A CLT, em seu artigo 9º, já estabelece a nulidade de atos que visam fraudar a aplicação de seus preceitos.
* Atuação na Esfera Legislativa e Regulatória: Diante da insuficiência da CLT para a gig economy e trabalhadores informais, é fundamental que o legislativo brasileiro crie legislação própria ou adapte a CLT. Advogados podem atuar na formulação de novas regulamentações que definam a natureza jurídica do vínculo, garantam direitos remuneratórios transparentes, e estabeleçam segurança e bem-estar, como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e assistência em acidentes. Cédric Durand sugere que as Big Techs poderiam ser transformadas em “monopólios públicos” ou ter seus termos de operação rigorosamente regulamentados pelos Estados, exercendo poder de veto sobre os conselhos de administração e garantindo direitos de supervisão. Advogados são essenciais na elaboração e defesa dessas formas de intervenção estatal consciente.
* Promoção da Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) e Combate à Precarização: A precarização do trabalho formal e a falsa promessa do empreendedorismo digital levam ao desgaste e adoecimento físico e mental dos trabalhadores. O advogado, ao lutar pela formalização e garantia de direitos (como FGTS, seguro-desemprego, aposentadoria, auxílio-doença), contribui diretamente para a Qualidade de Vida no Trabalho (QVT). Empresas que investem em QVT promovem bem-estar, satisfação e produtividade. Além disso, a atuação jurídica é vital para combater o discurso neoliberal que desvaloriza a proteção trabalhista e camufla a exploração. Ao informar sobre os direitos e as conquistas históricas, advogados fortalecem as correntes contra-hegemônicas e promovem a organização coletiva como forma de resistência à exploração. A sociedade precisa reorganizar-se coletivamente. A questão não é o fim do capitalismo, mas a capacidade de mudar as regras conscientemente e reorganizar a sociedade para superar as formas de dominação. O direito, operado por advogados, atua como um instrumento vital para desnaturalizar a precarização como um destino inevitável, reafirmando a agência humana na construção de uma sociedade mais humanizada e justa. É preciso lutar por um mundo onde haja tempo para o lazer e a vida plena, resgatando a capacidade de construir um futuro que sirva ao bem-estar social no sentido laboral, e não à ampliação da dominação e da desigualdade impulsionada pela economia da inte
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