Maria Emilia

A face Brasileira de Shakespeare em Machado de Assis: Estudo de caso de Otelo X Dom Casmurro

Postado em 15 de julho de 2025 Por Mª Emília M. de Oliveira Queiroz e Costa Advogada e Professora

A influência shakespeariana é latente na obra de Machado de Assis. Tal qual o autor inglês, o brasileiro tinha inclinação por escolher temas e personagens ligados ao jurídico e narradores analíticos e racionais. Ao tratar sobre o Poder e a Justiça em Shakespeare, grande contribuição nos forneceu o saudoso Professor Luiz Cancellier Olivo, de quem tive a honra de ser aluna e orientanda na UFSC. Parafraseando Call, como era chamado por seus alunos, os recursos literários e estilísticos utilizados por Shakespeare continham referências jurídicas expressando, que lhe faz asseverar haver uma teoria do direito no autor inglês, que reflete não apenas a sua época, mas anuncia o surgimento do Direito moderno, baseado na predominância da razão humana e do sujeito de direito. Na época da transição entre as concepções medievais e a racionalidade moderna, Shakespeare foca no humano em detrimento do místico, explorando o racionalismo analítico em seus personagens e o contexto social que os cerca. Esse é um dos pontos tangenciais entre o autor inglês e o brasileiro Machado de Assis, dizendo Call que: “nele tudo é história, política e realidade.”

Especificamente no caso de Dom Casmurro, Machado de Assis fez o personagem principal demonstrar perfeita habilidade argumentativa e alto poder de persuasão. Tanto é assim que mesmo sem qualquer prova concreta ou forte indício contra Capitu, a maioria da doutrina conclui pela infidelidade dela, pela manipulação do narrador ao longo da obra. Apesar de o autor não ser advogado, incutiu o feeling argumentativo e até falacioso típico de alguns renomados causídicos em Bentinho, mesmo não tendo uma materialidade da traição, como Shakespeare incluiu em Otelo pelo lenço de Desdêmona. A mágica argumentativa de Machado em Dom Casmurro se assemelha a de grandes causídicos na tribuna, ainda que não tenha sido o autor brasileiro advogado! Ele tratava fazia uma simbiose argumentativa entre linguagem jurídica e literária, expressando nesse jogo as relações de poder entre os partícipes.

A influência shakespeariana na obra de Machado de Assis em Otelo e Dom Casmurro se retrata explicitamente em três momentos da obra do brasileiro que referencia a ópera de Otelo: 1. “uma ponta de Iago”; 2. “Uma reforma dramática” e 3. “Otelo”.

Assim, temos  episódios marcantes em Dom Casmurro, que se associam ao drama inglês, dos quais o diálogo entre Bentinho e José Dias, no Seminário. Como o próprio Machado sugere, há em José Dias características de Iago, o impulsionador dos ciúmes de Otelo. Ante a malícia no comentário de José Dias sobre Capitu, de que ela estaria à procura de um homem, na vizinhança, que se casasse com ela, o que fez com que Bentinho sentisse instintivamente ciúmes por provocação baixa! Isso se assemelha com a reação de Otelo, quando Iago caluniou Desdêmona, por invejar e almejar ao cargo de Cássio, a quem intitulou como amante dela. Já em relação a José Dias, além de ele ter rixa pessoal com Pádua, o pai de Capitu, o seu maior intuito de prejudicar o relacionamento do casal era por temer que, casando-se Bentinho com a vizinha, ele pudesse perder os privilégios e regalias que tinha na casa de Dona Glória.

Além disso, outra semelhança entre os personagens Bentinho e Otelo é a corrupção moral na tragédia shakespeariana, marcada pela frase de Iago “mete dinheiro na bolsa”. Em Machado, isso vai se revelar no ciúme que Bentinho sentiu ao saber que Capitu adquirira libras esterlinas por intermédio de Escobar, na ausência do marido em casa.

Notável também a referência de Machado de Assis ao mar, em Dom Casmurro. Os olhos de ressaca de Capitu, que seduziram Bentinho, o ciúme que ele sentia ao vê-la contemplando o mar; a morte de Escobar afogado, apesar de ser exímio nadador. Tudo parece remontar ao cenário em que se passou o drama de Otelo, cercado pelo mar.

Podemos traçar o seguinte quadro comparativo:

SEMELHANÇASSCHAKESPEAREMACHADO DE ASSIS
OBRAOteloDom Casmurro
MARIDOOteloBentinho
ESPOSADesdemônaCapitu
INSTIGADOR DO CIÚMEIagoJosé Dias
SUPOSTO AMANTECássioEscobar
MATERIALIDADE DA SUPOSTA TRAIÇÃOLençoSemelhança do filho Ezequiel com Escobar

Otelo e Bentinho, apesar de correlatos nas obras, não possuem grandes semelhanças de personalidade.

O primeiro é general, de personalidade ativa, tendo a violência rondando seu cotidiano; o segundo, advogado, com perfil acanhado, com vida organizada e pacífica. Os dois tiveram que vencer as adversidades para se casarem. Otelo fugiu para casar se com Desdêmona e quando Brabâncio, pai dela, soube tentou matá-lo. Já Bentinho, cumpriu um plano arquitetado por Capitu, livrando-se do Seminário por uma barganha que fez com sua mãe e com Deus.

Um ponto em comum é o complexo de inferioridade de ambos. De Otelo, por ser mouro e já de idade e ter se casado com uma mulher jovem e branca, da sociedade. De Bentinho, por ser franzino e não ter talento para os números. Dom Casmurro é Otelo evoluído, que maldiz Desdêmona e apresenta a punição aplicada à mulher e ao filho como sendo justa. O gesto intertextual de Machado repete, de maneira inovadora, o passado no presente, dando continuidade ao eco trágico. Pode-se dizer, portanto, que se ouvem, em Dom Casmurro, ecos de Otelo que ressoam aqui e ali, em novo tom.

O perfil das esposas é parecido. Ambas jovens, de família, apaixonam-se pelos protagonistas e lutam para se casarem com eles. Também semelhante o fato de, após o casamento, tornarem-se esposas devotadas à família e dependentes financeiramente de seus maridos. As duas também foram alvo do ciúme dos maridos e vítimas de violência doméstica contra a mulher.

Como supostos amantes, temos Cássio e Escobar. Ambos são amigos de confiança dos maridos. São eloquentes e fisicamente atraentes. Os dois têm companheiras, Cássio a amante, Bianca; e Escobar a esposa, Sancha.

Os instigadores do ciúme dos maridos guardam maiores dessemelhanças, porque, apesar da já citada semelhança da subalternidade em relação aos maridos, Iago tem perfil criminoso e José Dias não. Iago, ao longo da trama, comete vários crimes, como a difamação de Desdêmona e Cássio; o homicídio de Rodrigo; e a lesão corporal de Cássio. Além disso, suas intenções são sórdidas e ele odeia Otelo. Já José Dias, mesmo tendo tecido comentários maliciosos para afastar Capitu e Bentinho no início do relacionamento, revelou apenas ser mesquinho e interesseiro, não passando suas atitudes à esfera penal; inclusive, não considerava Bentinho seu inimigo.

Supondo a traição das respectivas esposas é que, tanto Otelo, como Bentinho, procuram uma prova material. Otelo obteve esse indício pelo lenço, que julgava encantado, com que presenteou Desdêmona, encontrado no quarto de Cássio. Já Bentinho teve essa materialidade personificada em Ezequiel, até então tido como filho do casal. Isso porque, a cada dia, identificava em Ezequiel novas características de Escobar, já falecido.

Considere-se que em ambas as obras os maridos tinham complexo de inferioridade em relação às esposas e seus ciúmes foram manipulados por subalternos que queriam manter-se ou ascender nos cargos. Dada a paixão com que reagiram à possibilidade de serem traídos, não houve razoabilidade na investigação dos supostos adultérios. Por isso, em comum, os dois têm o fato de serem sujeitos ativos de violência doméstica contra a mulher.

Só diferem drasticamente os autores quanto ao desfecho da obra. Isso porque, confirmando tese de que Dom Casmurro é Otelo evoluído, enquanto Shakespeare optou pela drástica punição do protagonista, que dá nome à obra, matando a esposa supostamente infiel, Desdêmona; enquanto que Machado de Assis fugiu do clichê e escolheu inteligentemente uma punição de vanguarda, onde Bentinho exilou Capitu no estrangeiro, sem com ela ter contato mesmo depois da morte trágica do filho afogado.

Portanto, de fato há motivos para se considerar Machado de Assis o Shakespeare dos trópicos pela singularidade que fez guardar Bentinho com Otelo, mas há de se prestigiar a criatividade do autor brasileiro ao optar por um desfecho mais criativo e inteligente, que fugiu dos clichês literários para a obra.

Bairrismos à parte, Machado de Assis com Dom Casmurro superou Shakespeare com Otelo por finalizar obra brasileira que tinha em comum com a inglesa tratar sobre jogos de poder que envolveram o patriarcado, flertando com supostas traições das esposas devotadas e sendo elas punidas por tais suspeitas, optando por uma punição que só envolveu violência simbólica e não física, inovando com um desfecho não previsível por não envolver morte da mulher!

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