O inquérito policial ocupa posição central na persecução penal brasileira, sendo o principal instrumento da fase pré-processual do sistema de justiça criminal. Sua função vai além da mera investigação, atuando como mecanismo de garantia da legalidade, proteção dos direitos fundamentais e prevenção de abusos na aplicação do direito penal. Historicamente concebido como procedimento administrativo de caráter inquisitivo, destinado à coleta de elementos informativos para subsidiar o Ministério Público na propositura da ação penal, o inquérito evoluiu com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e a incorporação de princípios constitucionais, consolidando-se como etapa essencial para a proteção da sociedade e do investigado.
No Brasil, o inquérito policial foi instituído pelo Decreto nº 4.824/1871 e posteriormente consolidado no Código de Processo Penal de 1941, passando por diversas reformulações doutrinárias e práticas que o alinharam ao sistema acusatório contemporâneo. Conforme Guilherme de Souza Nucci (2020), trata-se de procedimento administrativo presidido pela autoridade policial, destinado à apuração da autoria e das circunstâncias de infrações penais. Sua natureza é informativa e preparatória, caracterizando-se pelo sigilo, forma escrita e discricionariedade técnica da autoridade, elementos que, interpretados à luz da Constituição Federal de 1988, garantem a legalidade e a proteção de direitos fundamentais.
O respaldo constitucional encontra-se no art. 144, §4º, que atribui à Polícia Civil a função de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto militares. Segundo Alexandre de Moraes (2022), a persecução penal deve observar o devido processo legal desde o início das investigações, sendo o inquérito instrumento que materializa princípios como ampla defesa, presunção de inocência e dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o delegado de polícia atua como garantidor da legalidade, conduzindo a investigação de forma imparcial, técnica e dentro dos limites legais, consolidando o equilíbrio entre eficiência investigativa e proteção dos direitos do investigado.
A função primordial do inquérito policial é fornecer subsídios ao Ministério Público para a adequada formação da opinio delicti. Conforme Renato Brasileiro de Lima (2021), cumpre funções informativa, preventiva e garantidora: coleta de provas, prevenção de abusos e proteção do investigado contra persecuções indevidas. Na prática forense, é a base inicial sobre a qual se estrutura a ação penal, sendo reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça o valor probatório dos elementos colhidos, desde que confirmados em juízo (STJ, HC 597.405/RS, 2020). A Lei nº 12.830/2013 reforça a autonomia e discricionariedade técnica do delegado, consolidando a credibilidade do procedimento investigativo.
A doutrina contemporânea tem revisitado o papel do inquérito à luz do sistema acusatório. Douglas Fischer (2023) destaca que o inquérito deixou de ser mero procedimento inquisitivo para tornar-se instrumento de racionalidade probatória e filtro de legalidade. O Supremo Tribunal Federal, no Inquérito 4.831/DF (2022), reafirmou que a investigação deve observar proporcionalidade e razoabilidade, sob controle judicial e ministerial, evidenciando a evolução do instrumento como mecanismo democrático de proteção à legalidade e aos direitos fundamentais.
Na era digital, o inquérito incorporou novas ferramentas, como perícias digitais, inteligência artificial e bancos de dados, transformando a coleta de provas. A Lei nº 13.964/2019 instituiu a cadeia de custódia, reforçando a integridade das provas digitais, enquanto a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) estabelece limites à coleta e compartilhamento de informações pessoais, exigindo do delegado atuação pautada na proporcionalidade e finalidade da investigação (Cunha, 2022).
O respeito aos direitos humanos é elemento indissociável da investigação criminal contemporânea. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incorporada ao ordenamento jurídico com status supralegal, determina que as investigações respeitem o devido processo legal. Lênio Streck (2021) alerta que práticas autoritárias comprometem a validade das provas e podem levar à nulidade do processo. Nesse sentido, o inquérito atua como instrumento de proteção tanto ao investigado quanto à vítima, funcionando como filtro do poder punitivo estatal.
Em síntese, o inquérito policial, frequentemente subestimado, revela-se peça central na engrenagem da persecução penal, garantindo legalidade, proteção de direitos fundamentais e racionalidade processual. A modernização das investigações, a valorização do delegado como garantidor da legalidade e a observância dos princípios constitucionais consolidam o inquérito como ferramenta indispensável para um processo penal justo e democrático, reforçando o Estado Democrático de Direito e contribuindo para a efetividade da justiça penal.
Referências
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
CUNHA, Rogério Sanches. Investigação Criminal Contemporânea. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
FISCHER, Douglas. O inquérito policial e o sistema acusatório no Brasil. Brasília: IDP, 2023.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Aplicado. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
STF – Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4.831/DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julgado em 2022.
STJ – Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 597.405/RS. Rel. Min. Ribeiro Dantas. Julgado em 2020.
STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.