Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha

A (In)constitucionalidade da exclusão de herdeiros por abandono afetivo: Entre a afetividade e a segurança jurídica

Postado em 29 de outubro de 2025 Por Michele Karine Carvalho Carneiro da Cunha Advogada, inscrita na OAB/PE sob o nº 64904, graduada em Direito pela AESO e pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UNINASSAU. Psicanalista clínica e didata, com sólida formação humanística e técnica, integra a prática jurídica à escuta qualificada, o que fortalece sua atuação na mediação e resolução de conflitos complexos. Professora nas disciplinas de Direito Civil e Processo Civil. Possui ampla atuação nas áreas de Direito de Família e sucessões e Direito Imobiliário assim como toda área cível, com foco especial em demandas que envolvem alta carga emocional e questões técnicas. Reconhecida pela abordagem estratégica, ética e interdisciplinar, destaca-se como profissional comprometida com a justiça, a escuta e a transformação de realidades por meio do Direito.

1. Introdução

O Direito de Família brasileiro vem passando por profundas transformações nas últimas décadas. A tradicional concepção patrimonial e hierárquica da família cedeu espaço a uma visão mais humanizada, centrada na dignidade da pessoa humana e na afetividade. Nesse novo contexto, surgem discussões sensíveis sobre o papel do afeto nas relações jurídicas, especialmente quando se entrelaçam laços familiares e consequências patrimoniais.

Um dos temas mais debatidos atualmente é a possibilidade de excluir herdeiros da sucessão em razão de abandono afetivo, prática que levanta questionamentos sobre a compatibilidade dessa hipótese com os princípios constitucionais. Afinal, o abandono afetivo pode gerar efeitos não apenas morais, mas também patrimoniais? E, mais ainda: seria constitucional ampliar o rol de exclusão de herdeiros previsto no Código Civil?

2. A afetividade como princípio norteador do Direito de Família

A Constituição Federal de 1988 revolucionou o conceito jurídico de família ao substituir o modelo tradicional, baseado no matrimônio e na autoridade patriarcal, por uma concepção plural e democrática. A partir dela, a afetividade passou a ser reconhecida como elemento estruturante das relações familiares, ainda que implicitamente.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm reconhecendo a afetividade como valor jurídico apto a produzir efeitos concretos, como se observa no reconhecimento da paternidade socioafetiva e da multiparentalidade. Nesse cenário, a família deixa de ser mera unidade econômica para se tornar espaço de realização pessoal e de solidariedade recíproca.

3. O abandono afetivo e seus reflexos jurídicos

O chamado abandono afetivo acontece quando um dos membros da relação familiar — geralmente um dos pais — deixa de exercer o dever de cuidado, de presença e de atenção, frustrando o direito fundamental do outro à convivência familiar.

O Superior Tribunal de Justiça, no emblemático REsp 1.159.242/SP, reconheceu a possibilidade de indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo, entendendo que o dever de afeto é juridicamente relevante. Esse entendimento abriu um precedente importante, mas também trouxe novas questões: se o abandono afetivo pode gerar reparação civil, poderia igualmente implicar exclusão sucessória?

4. A exclusão de herdeiros no Código Civil

O artigo 1.814 do Código Civil estabelece hipóteses específicas de exclusão de herdeiros, como a prática de homicídio doloso contra o autor da herança, acusação caluniosa de crime e coação sobre o testador. Trata-se de um rol taxativo, inspirado na necessidade de preservar a segurança jurídica e a estabilidade das relações patrimoniais.

O abandono afetivo, contudo, não figura expressamente entre as causas legais de exclusão. Assim, qualquer ampliação desse rol dependeria de interpretação constitucional ou mesmo de alteração legislativa, o que tem alimentado intenso debate na doutrina e na jurisprudência.

5. A inconstitucionalidade da exclusão por abandono afetivo

Os que defendem a inconstitucionalidade dessa exclusão argumentam que a medida violaria o princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF), já que ninguém pode ser privado de um direito como o de herdar sem previsão legal expressa. Além disso, o Direito Sucessório possui natureza eminentemente patrimonial, o que exige previsibilidade e estabilidade normativa.

A ampliação do rol de exclusão, por via judicial, abriria precedentes perigosos e subjetivos, baseados em interpretações morais ou emocionais, capazes de comprometer a segurança jurídica e a própria função estabilizadora do direito sucessório.

6. A constitucionalidade da exclusão por abandono afetivo

De outro lado, há quem sustente que a exclusão de herdeiros por abandono afetivo seria plenamente compatível com a Constituição Federal, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade familiar (art. 3º, I e art. 229). Para essa corrente, o afeto não é mera abstração emocional, mas um dever jurídico decorrente da convivência familiar.

O argumento fundamental é o de que o abandono afetivo rompe o vínculo ético e jurídico que fundamenta o direito sucessório. Assim, seria contraditório permitir que aquele que negligenciou deveres fundamentais de cuidado venha a beneficiar-se da herança de quem foi emocionalmente desamparado.

Alguns tribunais estaduais já enfrentaram o tema de forma inovadora. O TJMG, por exemplo, reconheceu, em decisões pontuais, a possibilidade de exclusão de herdeiro com base na violação grave dos deveres familiares, embora ainda sem uniformização jurisprudencial.

7. Análise crítica e caminhos possíveis

O debate revela a tensão entre afetividade e segurança jurídica, dois valores constitucionais igualmente relevantes. De um lado, o direito não pode ignorar a dimensão humana das relações familiares; de outro, tampouco pode se submeter a critérios emocionais subjetivos.

A solução talvez resida em um equilíbrio interpretativo: admitir que o abandono afetivo possa gerar responsabilidade civil e reflexos éticos no âmbito sucessório, mas sem desrespeitar a legalidade estrita. Para tanto, seria necessária uma reforma legislativa que atualizasse o Código Civil, incluindo o abandono afetivo entre as causas de exclusão ou prevendo expressamente suas consequências jurídicas.

8. Conclusão

A exclusão de herdeiros por abandono afetivo representa um dos dilemas mais instigantes do Direito de Família contemporâneo. O tema desafia juristas e tribunais a ponderar entre a força normativa dos afetos e a rigidez das regras sucessórias.

Se, por um lado, o afeto se consolida como valor jurídico constitucional, por outro, a sucessão exige previsibilidade e segurança. Enquanto o legislador não se manifesta, o Poder Judiciário deve atuar com cautela, preservando o equilíbrio entre o dever moral de cuidado e o direito patrimonial à herança.

Mais do que uma questão de patrimônio, trata-se de um debate sobre valores humanos: o reconhecimento de que o afeto, quando ausente de forma injustificada, pode deixar marcas mais profundas do que a própria herança material.

9. Referências bibliográficas

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: RT.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família e Sucessões. São Paulo: Saraiva.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Família e Sucessões. Rio de Janeiro: Forense.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. São Paulo: Atlas.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Constituição Federal de 1988.

STJ, REsp 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi.

TJMG, Ap. Cív. 1.0024.08.948005-6/001.T

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