Carlos Pessoa de Aquino

A travessia de um criminalista – Quarenta anos de uma vida entre a palavra e a liberdade

Postado em 10 de agosto de 2025 Por Carlos Pessoa de Aquino  A leitura como ponte para a liberdade: o impacto da remição da pena e o Projeto LIBERTCE na Paraíba

“O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo” Jorge Luis Borges

Há quarenta anos, ergui minha beca como quem empunha uma bandeira – não uma insígnia qualquer, mas a flâmula da palavra, da liberdade, da esperança, da justiça feita no chão do mundo. Era a aurora de uma caminhada que, a cada passo, transbordaria em lutas, dores, vitórias, derrotas, e acima de tudo, em humanidade.

Sou criminalista. Desses que ainda caminham pelas veredas da “old school”, onde se cultua a retórica como espada, a leitura como alimento e a sensibilidade como radar. Onde a alma do advogado criminal não se mede pela quantidade de causas ganhas, mas pela intensidade com que mergulha no drama humano de cada réu, de cada família, de cada julgamento. Por onde passo, carrego comigo o eco das celas, o cheiro do Fórum, o peso dos autos, o olhar suplicante de quem deposita no advogado a última esperança antes do abismo.

O mundo mudou, as leis se adaptaram, os costumes se aceleraram, mas o centro gravitacional da advocacia criminal permanece intacto: a luta pela dignidade humana diante do poder punitivo do Estado. Essa luta não se aprende em manuais, tampouco se encerra nos diplomas; ela se sente na pele, se conquista no corpo a corpo, se molda no fogo das audiências e na noite solitária das reflexões éticas. Por isso afirmo … A advocacia criminal é uma arte que exige nervos de aço, coração de poeta e firmeza de guerreiro.

Lembro do primeiro júri como se fosse hoje. Mãos trêmulas, coração em marcha, olhos atentos. O salão parecia uma arena, e eu, gladiador novato, com um processo em uma mão e a esperança do réu na outra. Ali, aprendi o que nenhuma faculdade ensina: que há uma liturgia na defesa, um sagrado rito de escuta, fala e confronto. Aprendi a ser resiliente, a suportar o peso do silêncio dos inocentes e a fúria de quem deseja vingança e não justiça.

Ser criminalista é viver entre extremos: entre o medo e a bravura, entre a técnica e a intuição, entre a letra fria da lei e o calor humano da tragédia. E mesmo quando tudo parece perdido, ainda assim se resiste. “Resistir” – essa é a palavra que define a essência da advocacia criminal.

“A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.” Aristóteles

Ao longo dessas quatro décadas, vi a evolução da dogmática penal, a sofisticação dos crimes de colarinho branco, a expansão do processo penal midiático. Assisti à ascensão e queda de juízes e promotores, de heróis fabricados e escândalos reais. Estive em palácios e presídios, em auditórios e vielas, e em todos os espaços vi o mesmo clamor: “me escute, me defenda, me compreenda”.

Vi, sim, o horror. Mas vi também o arrependimento genuíno, o abraço após a absolvição, o pranto contido de uma mãe na plateia. Aprendi que não há script. Cada causa é uma vida, cada vida é um universo, e o advogado criminal é, acima de tudo, um tradutor das dores e complexidades desse universo perante o tribunal.

II. O PESO DAS TOGAS E A LEVEZA DA POESIA

“A experiência não é o que acontece com um homem; é o que ele faz com o que lhe acontece.”  Aldous Huxley

Com o tempo, aprendi que ser criminalista não é apenas saber o que dizer, mas quando calar. Há silêncios mais eloquentes que discursos, e há momentos em que uma pausa sustenta uma absolvição. O domínio do tempo – o jurídico, o psicológico, o existencial – é o dom maior de quem vive da palavra.

E foi nesse vaivém de batalhas, entre sustentações orais e interrogatórios, que descobri a poesia como aliada. Ela me salvou. Sim, a poesia: esse respiro diante da crueza do mundo, essa forma de ver o invisível, de nomear o inominável. Em dias de júris exaustivos, em noites de derrotas difíceis, em madrugadas de sentenças injustas, era à poesia que eu recorria para não embrutecer.

“A função da arte é lavar a alma da poeira do cotidiano.”
Pablo Picasso

Há no criminalista uma alma em constante risco de contaminação pelo desespero alheio. Vi homens e mulheres destruídos pelo sistema, vítimas da seletividade penal, marginalizados não só pela sociedade, mas também por aqueles que deveriam zelar pela justiça. Nessas horas, o romantismo da juventude é posto à prova. É preciso ter garra para continuar, mas é ainda mais essencial ter coração para não se tornar igual ao sistema que combatemos.

Cada causa me transformou. Cada rosto marcado pela dor, cada mãe que me confiou o filho algemado, cada lágrima que escorreu durante o júri. Não há como sair ileso. A profissão nos atravessa, nos costura e nos refaz. É um ofício que cobra caro, mas oferece em troca a possibilidade de fazer diferença. E isso basta.

“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.” Hannah Arendt

E eu contei histórias. Muitas. Com a voz, com os olhos, com os gestos. A arte da tribuna é também teatro e filosofia. É ali que se representa, diante dos jurados, o conflito entre o bem e o mal, a queda e a possibilidade de redenção. Não raro, me vi emocionado diante de um depoimento, de uma lembrança revelada em plenário, de um reencontro no corredor do fórum. Nessas horas, percebia que a vida não se curva aos códigos, mas os códigos devem se curvar à vida.

E que vida essa que vivi! Nos corredores do Tribunal do Júri, forjei amizades eternas, conheci adversários honrados, fui aplaudido, fui vaiado, fui incompreendido, fui reverenciado. Vivi intensamente, e sigo vivendo.

III. OS TEMPOS DE AGORA E O CHAMADO ÀS NOVAS GERAÇÕES

Vivemos tempos difíceis. O direito penal, que deveria ser o último recurso do Estado para conter as violações mais graves ao pacto social, tornou-se, muitas vezes, o primeiro instrumento para eliminar os indesejáveis. Não raro, vejo um Judiciário submisso ao clamor das redes sociais, a lógica do espetáculo substituindo o devido processo legal, a acusação ocupando espaços que antes pertenciam à prudência.

O Estado, cada vez mais vigilante, multiplica suas mãos, suas câmeras, seus tentáculos, e o sistema penal, faminto, engole corpos e sonhos — especialmente os dos pobres, pretos e periféricos. O cárcere virou resposta padrão, a prisão preventiva banalizou-se, o garantismo virou palavrão. E é nesse cenário hostil que o advogado criminal precisa manter a altivez, a técnica, a coragem e a compostura. É agora que precisamos dos novos advogados — não apenas preparados, mas também sensíveis e aguerridos.

“A Justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade é das teorias” John Rawls

À juventude jurídica que me lê — especialmente àquela que se sente chamada pela chama indomável da advocacia criminal — digo: não tenham medo. A arena é dura, sim. Mas é bela. É nela que se trava a verdadeira batalha civilizatória entre o arbítrio e a liberdade. Ser advogado criminal é dizer “não” quando todos gritam “sim”. É ser ponte, mesmo quando todos erguem muros.

Mas para isso, é preciso formar-se além da letra fria. É preciso ler poesia, ouvir música, amar a filosofia. É necessário entender a alma humana, com suas quedas, suas complexidades, seus abismos e suas luzes. O bom criminalista não é apenas aquele que conhece a lei, mas aquele que conhece o ser humano. E o conhece porque sente com ele, caminha com ele, o escuta em silêncio.

“Nenhum homem é uma ilha, completo em si mesmo. Cada homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme” John Donne

A beca não é manto de vaidade, mas de serviço. O paletó do advogado criminal deve carregar suor, não arrogância. Não é a vestimenta que legitima, mas a entrega. E essa entrega deve ser total. Não se advoga pela metade. Quem defende uma vida, defende o mundo inteiro. O jurista que não se comove com a dor alheia tornou-se burocrata. E isso, nós não podemos ser.

Aos jovens, deixo também um conselho que vem da carne e da alma: cuidem de si. O exercício da advocacia criminal consome, fragiliza, sangra. Tenham amparo afetivo, espiritual, estético. Plantem flores na alma para não se tornarem insensíveis. E, acima de tudo, respeitem os colegas, os adversários e os clientes. Dignidade é o nome de todo esse ofício.

IV. O LEGADO ESCULPIDO NA PALAVRA

“Tudo vale a pena se a alma não é pequena” Fernando Pessoa

Quarenta anos. Quatro décadas entre o verbo e a sentença, entre a lágrima e o aplauso. Quarenta anos de trincheiras erguidas no calor das salas de audiência, de esperas em delegacias, de batalhas no Tribunal do Júri, de dias e noites entre códigos e rostos aflitos. Há quem me pergunte: o que fica de tudo isso? E eu respondo: fica o que não cabe nos autos.

Ficam os olhos marejados daquele pai que ouviu a absolvição do filho. Fica a carta escrita à mão por um detento me agradecendo por “não tê-lo tratado como um bicho”. Fica o abraço silencioso de uma mãe depois do julgamento. Fica o respeito conquistado até dos promotores mais aguerridos e dos juízes mais duros. Fica o nome que carrego, firmado não em placas ou medalhas, mas no olhar de quem viu que fui justo.

E fica, sobretudo, a certeza de que cumpri meu papel. Que resisti — contra as injustiças, contra o cansaço, contra o sistema. Que fui pedra e flor. Que fui escudo e ponte. Que honrei a toga e nunca abandonei o romantismo, mesmo quando ele parecia anacrônico aos olhos de alguns.

“O importante não é o que fizeram de mim, mas o que eu faço com o que fizeram de mim” Jean-Paul Sartre

Carrego um ideal: o de que a advocacia é um sacerdócio laico, uma arte de compaixão técnica, uma militância em nome da humanidade. E se hoje me debruço sobre a memória desses quarenta anos, não é para descansar no passado, mas para iluminá-lo, transformando-o em legado para os que vêm depois.

Há um fio invisível que liga o criminalista veterano ao jovem advogado que, agora, talvez neste exato instante, prepara sua primeira sustentação. E é nesse fio — feito de ética, coragem, dignidade e paixão — que repousa a continuidade da missão.

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção.” Paulo Freire

E foi isso que procurei fazer: ensinar com o exemplo, com os tropeços, com os acertos, com os gestos. Mostrar que é possível ser firme sem ser cruel. Que é possível ser técnico sem ser desumano. Que é possível lutar pelo Direito sem trair a Justiça.

 V. A VOZ QUE NÃO SE CALA

“Quando já não somos capazes de mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos” Viktor Frankl

Chegar até aqui não foi fácil. Nem deveria ser. A grandeza do caminho se mede pelas dores que ele exige, pelas renúncias que cobra, pelos silêncios que impõe. Mas também pelos frutos que florescem, pelos laços que se entrelaçam, pelas sementes que se espalham.

Quarenta anos não cabem numa biografia. Nem num currículo. Cabem, sim, no coração. Em cada memória viva que pulsa quando cruzo os corredores do fórum e sou saudado por antigos clientes, por promotores respeitosos, por juízes que foram testemunhas da minha postura. Cabem nos jovens que me escrevem, que me ouvem, que me leem. Cabem nos filhos da Justiça que ajudei a libertar — e, em muitos casos, a reconstruir.

Porque ser criminalista não é apenas libertar corpos: é libertar histórias. É oferecer voz a quem nunca teve voz. É ser ponte entre o abismo e a esperança. É fazer da palavra um escudo e, por vezes, uma espada. É viver no fio da navalha entre o humano e o desumano. É suportar olhares duros, resistir à incompreensão, manter-se inteiro diante da dor do outro.

Então afirmo … A palavra, quando acesa de verdade, é mais que som. É sentido. É vida.

E é essa palavra que me mantém. A que ecoa no tribunal. A que consola nas madrugadas. A que denuncia a injustiça e defende o que ainda pode ser salvo. A que instrui sem arrogância. A que canta, mesmo em meio ao ruído dos grilhões.

Sim, sou da old school. E tenho orgulho. Sou da época em que o advogado levava o processo debaixo do braço e a ética no peito. Da era em que o júri era palco de epopeias jurídicas, e não de espetáculo midiático. Da geração que acreditava — e ainda acredita — que o direito penal deve ser instrumento de civilização, e não de barbárie.

Mas não me rendo à nostalgia estéril. Enxergo nos jovens advogados e advogadas a centelha que um dia me incendiou. E é a eles que deixo meu último recado:

Sigam. Lutem. Estudem. Sejam firmes, mas ternos. Sejam técnicos, mas humanos. Não percam o encanto da causa justa. Não troquem o romantismo da justiça pela frieza do sistema. E, acima de tudo, nunca deixem que o medo cale a voz de vocês.

Digo eu, … Ainda que eu morra, minha voz há de sobreviver nos corredores da Justiça, soprando nos ouvidos de quem ainda ousa defender a liberdade

O tempo passa. A toga envelhece. O corpo cansa. Mas a chama que me moveu arde intacta.

Porque ser criminalista é uma forma de existir.

E essa existência, em mim, será eterna.

 EPÍLOGO — A CHAMA QUE NÃO SE APAGA

Por isso afirmo … Não se nasce advogado. Torna-se. A cada dia, a cada causa, a cada dor assumida como própria. A cada vez que, diante da injustiça, escolhemos não nos calar.

E assim encerro, mas sem pôr fim.

Porque o ofício do criminalista não termina com a aposentadoria, nem com a última sustentação oral, nem com o silêncio da sala de audiência vazia. Ele continua vivo nos ecos deixados, nos alunos formados, nos colegas inspirados, nos clientes que voltaram a sonhar, nos livros escritos, nos artigos lidos, nas aulas dadas com paixão.

A chama continua. Não mais nas longas noites de preparo para o júri, mas agora nas palavras que seguem adiante, semeadas nas consciências de quem entendeu que advogar é servir. Que defender é amar. Que lutar pela liberdade alheia é também libertar-se.

Hoje, sigo com o coração cheio de gratidão — não porque a estrada foi fácil, mas porque foi verdadeira. E que esse legado não seja estático: que se mova, que se reinvente, que inspire.

Pois se a Justiça é uma ideia, a advocacia é o sopro que lhe dá vida.

E enquanto houver injustiça, haverá vozes. E enquanto houver vozes, que uma delas ainda ecoe — a minha, entre tantas.

DEDICATÓRIA

Dedico esta travessia:

Aos meus mestres e professoras, que um dia me olharam com fé antes que eu mesmo acreditasse em mim.

Aos meus clientes, que me confiaram suas vidas e suas esperanças nos momentos mais sombrios.

Aos colegas advogados e advogadas de todas as trincheiras, com quem dividi o pão da labuta e o vinho da honra.

Aos promotores leais, aos juízes justos, aos defensores do Estado de Direito que jamais esqueceram que julgar é também um ato de humanidade.

Aos meus filhos — O biológico, Carlos Henrique Aquino e os espirituais — e a todos os jovens que cruzaram meu caminho sedentos de justiça, coragem e propósito.

E, sobretudo, à liberdade — essa senhora altiva, desafiadora e luminosa, com quem dancei por quatro décadas de combate.

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