Poliana Dias

Acesso à Magistratura e cotas raciais: Um caminho para o enfrentamento do racismo estrutural

Postado em 01 de outubro de 2025 Por Poliana Dias Graduanda em Direito, Graduada em Gestão de RH, Pós-Graduada em Gestão Pública. Servidora Pública da Justiça Federal de Pernambuco.

A história do Brasil é marcada por mais de três séculos de escravidão, um regime que não apenas retirou a liberdade de milhões de pessoas negras, mas que também negou a elas o acesso a direitos fundamentais, como educação, moradia digna e trabalho remunerado. A abolição da escravidão, em 1888, embora celebrada como marco da liberdade, não significou a inclusão social dos libertos. Ao contrário, os negros foram abandonados à própria sorte, sem políticas públicas que lhes garantissem condições mínimas de cidadania. Essa omissão do Estado consolidou a base de uma desigualdade estrutural que, ainda hoje, reverbera em todas as esferas da sociedade brasileira.

A escravidão não foi apenas a exploração do trabalho compulsório; ela também significou a desumanização de um povo e a construção de uma ordem social excludente. Quando o trabalho escravizado foi formalmente extinto, não houve qualquer projeto de integração dos libertos ao mercado de trabalho, nem reforma agrária, nem acesso a escolas ou programas de capacitação. Essa ausência de medidas reparatórias perpetuou uma lógica de marginalização social e econômica, que se consolidou como o que hoje denominamos racismo estrutural. 

É dentro desse contexto histórico que precisamos analisar o papel do Judiciário brasileiro no enfrentamento dessa dívida histórica. Durante grande parte do século XX, a estrutura do Judiciário manteve-se praticamente inacessível às pessoas negras. Os concursos públicos para magistratura, Ministério Público e Defensoria, bem como o ingresso em carreiras jurídicas, sempre exigiram um capital cultural, social e econômico que a população negra, em sua maioria, não possuía. A magistratura, em especial, foi marcada por um perfil elitizado e majoritariamente branco, reflexo direto de séculos de exclusão educacional e profissional.

Somente nas últimas décadas, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, é que o país passou a adotar medidas mais efetivas de combate à desigualdade racial. A criação da Lei de Cotas (Lei 12.711/2012), inicialmente voltada ao acesso ao ensino superior, representou um marco fundamental, abrindo as portas das universidades públicas para milhares de estudantes negros. Essa política permitiu que mais pessoas negras ingressassem em cursos de Direito, tradicionalmente frequentados por uma elite branca. Como consequência, ampliou-se o número de candidatos negros em concursos jurídicos, ainda que em proporções reduzidas. 

O Judiciário, diante desse novo cenário, passou a implementar iniciativas próprias para enfrentar a baixa representatividade racial em seus quadros. Em 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 336, que estabeleceu reserva de vagas para negros nos concursos da magistratura, reconhecendo a importância de corrigir distorções históricas dentro da própria estrutura judicial. Esse ato representou um avanço significativo: o Judiciário deixou de ser apenas aplicador da lei para também assumir uma postura institucional de promoção da igualdade racial. 

Para que a política de cotas não se restrinja ao plano formal, mas se traduza em maior presença de magistrados negros nos tribunais, o Judiciário passou a investir também em programas de incentivo à formação de candidatos negros. Destaca-se, nesse sentido, a parceria entre o CNJ, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Universidade Zumbi dos Palmares, responsável por oferecer bolsas de estudo e suporte pedagógico a quem deseja se preparar para a magistratura. Essa medida busca reduzir desigualdades já perceptíveis na etapa de preparação, momento em que os obstáculos econômicos costumam afastar muitos candidatos. Ainda que os efeitos dessas ações só possam ser avaliados em médio e longo prazo, representam um passo concreto para ampliar a representatividade racial dentro da estrutura judiciária. 

Outro ponto relevante foi a parceria do CNJ com a Universidade Zumbi dos Palmares para realizar diagnósticos qualitativos e quantitativos sobre a participação de negros no sistema de justiça. Trata-se de uma medida inédita, pois reconhece que enfrentar o racismo estrutural exige, antes de tudo, mapear as desigualdades e produzir dados confiáveis. Esse levantamento tem como finalidade orientar políticas mais assertivas, permitindo que as ações não fiquem restritas a declarações de intenções, mas se convertam em resultados mensuráveis. 

Apesar desses avanços, os números ainda revelam uma realidade preocupante. Pesquisas recentes apontam que menos de 20% da magistratura brasileira é composta por pessoas negras, percentual muito aquém da representatividade da população negra no país, que ultrapassa 55%, segundo o IBGE. A sub-representação também se repete entre servidores, assessores e estagiários do Judiciário. Ou seja, mesmo com políticas afirmativas, a estrutura continua predominantemente branca, reforçando a necessidade de ampliar esforços e monitorar de forma rigorosa os impactos das medidas adotadas. 

É necessário reconhecer que a implementação das cotas e das bolsas de preparação representa um passo importante, mas não suficiente. O combate ao racismo estrutural no Judiciário requer continuidade, fiscalização e expansão de iniciativas. Além de garantir acesso, é fundamental assegurar a permanência e o crescimento profissional de pessoas negras nas carreiras jurídicas. Para isso, mecanismos de acompanhamento, capacitação e políticas de promoção na carreira devem ser fortalecidos. 

Ao mesmo tempo, é preciso compreender que o Judiciário, ao adotar tais políticas, cumpre não apenas uma função administrativa, mas também uma função simbólica de grande relevância. A presença de magistrados e servidores negros nos tribunais contribui para a construção de uma justiça mais representativa e legítima, capaz de dialogar com toda a diversidade da sociedade brasileira. Esse impacto simbólico é essencial para quebrar estereótipos e fomentar a confiança da população no sistema de justiça. 

Não se pode esquecer que o enfrentamento do racismo estrutural no Judiciário também passa pela forma como ele julga casos de discriminação racial, violência policial e violações de direitos humanos. O modo como magistrados interpretam a lei, reconhecem a gravidade do racismo e responsabilizam os agressores é igualmente determinante para consolidar uma cultura jurídica comprometida com a igualdade racial. A postura ativa na aplicação da legislação antirracista fortalece o papel do Judiciário como guardião dos direitos fundamentais. 

Em síntese, o Judiciário brasileiro tem dado passos importantes no enfrentamento do racismo estrutural, ao reconhecer sua própria dívida histórica e implementar políticas de inclusão racial em seus quadros. As cotas raciais nos concursos de magistratura, as bolsas de preparação para candidatos negros e os diagnósticos de diversidade são avanços concretos que devem ser valorizados. No entanto, não podemos ignorar que o caminho ainda é longo. As transformações caminham em ritmo lento diante da profundidade das desigualdades construídas ao longo de séculos. 

O desafio que se impõe, portanto, é garantir que essas iniciativas não se percam no tempo, mas sejam aprimoradas e ampliadas, tornando-se parte permanente da estrutura judiciária. Só assim será possível transformar o Judiciário em um verdadeiro agente de equidade, não apenas julgando casos de racismo, mas dando exemplo de inclusão e diversidade dentro de sua própria casa. 

 Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. 

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 ago. 2012. 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 336, de 29 de setembro de 2020. Dispõe sobre reserva de vagas a pessoas negras nos concursos públicos para ingresso na magistratura. Brasília, DF: CNJ, 2020. 

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019

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