Nos últimos dias, um vídeo do influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, reacendeu o debate sobre a adultização de crianças e adolescentes. O fenômeno não é novo, mas ganhou proporções alarmantes com a exposição desmedida nas redes sociais. Felca, que soma mais de 15 milhões de seguidores no Instagram e quase 6 milhões de inscritos no YouTube, publicou um vídeo de quase 50 minutos que ultrapassou 33 milhões de visualizações em apenas cinco dias. Nele, denunciou canais que utilizam crianças e adolescentes para gerar lucro, explorando sua imagem, vendendo conteúdos com conotação adulta e tentando normalizar práticas abusivas e perigosas.
A força da denúncia se deve, em parte, à visibilidade do autor. Embora coletivos, organizações e especialistas já alertem há anos sobre esse problema, muitas vezes sem a devida atenção da sociedade ou das autoridades, a repercussão de um influenciador com alcance massivo rompeu a bolha das discussões restritas. Em menos de uma hora de vídeo, Felca apresentou exemplos concretos e deixou clara sua indignação, e até repulsa diante de conteúdos explícitos, erotizados e irresponsáveis, que não deveriam ter qualquer relação com a infância.
A linha tênue entre “fofura” e “violação de direitos” é facilmente ultrapassada quando a imagem, a voz e a intimidade de crianças são exploradas para gerar engajamento, monetização ou projeção pessoal de adultos responsáveis por elas.
Nesse ambiente virtual, onde é colocado a vida em posts, muitas vezes sem um filtro, daquilo que é bonito, tolerável, não vou dizer moral porque ela também é variável de acordo com costumes, crenças e culturas, daquilo que é uma exposição desnecessária e perigosa.
Essa discussão não pode ser dissociada do sharenting, que é um termo da combinação das palavras share do inglês compartilhar e parenting de criação dos filhos, que em uma tradução livre é a prática em que pais ou responsáveis compartilham a vida de filhos na internet ou ainda o oversharenting que é excessivamente compartilhado. A partir do momento em que conteúdos que deveriam permanecer no âmbito privado ganham dimensão pública, os perigos que se expõe a criança vão desde a violação da privacidade a riscos como cyberbullying, roubo de identidade, exploração sexual e uso indevido de sua imagem por terceiros.
A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) usadas de maneira conjunta e complementar já garantem, em seus dispositivos, preocupações com a proteção de menores de 18 anos. A Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente tem em seu texto a proteção integral e a prioridade absoluta do melhor interesse da criança e do adolescente. O Marco civil da Internet traz as possíveis responsabilizações e deveres de plataformas de internet com o conteúdo, trazendo as possibilidades de remoção daquilo que fere os direitos humanos. A Lei Geral de Proteção de Dados tem parte específica para os dados pessoais dos titulares de dados que são crianças e adolescentes, inclusive sendo considerado como dados pessoais sensíveis e tendo um cuidado a mais no tratamento desses dados.
O problema não está na falta total de legislação, mas sim na falta de aplicação efetiva e na desinformação da sociedade sobre esses direitos. A desinformação em especial é o que mais preocupa. Por um lado, temos pais que não sabem o risco que estão correndo com essas exposições e compartilham as imagens por considerarem momentos preciosos da vida dos filhos, acham bonito, se orgulham e pensam que quem está do outro lado da tela vai sentir o mesmo ao ver aquelas fotos e vídeos.
Do outro lado, temos aqueles que não se importam com a exposição, pelo contrário, as deseja, porque o engajamento é forma de monetização, e aquilo que chamamos de perigo, risco, eles chamam de lucro e querem mais. Por isso, atendem aos pedidos de seus seguidores por mais danças, menos roupas, mais exposição, humilhação e constrangimento.
Crianças e adolescentes que crescem em meio a toda essa divulgação, se acostumam com os comentários, curtidas e esperam por isso, porque para eles é o normal, foi assim que cresceram e acreditam que essa visibilidade é benéfica. Cresceram sem essa proteção, esse conhecimento de seus direitos, por isso não sabem que foram violados.
Essa exposição constante aos olhares e julgamentos de milhares, ou até milhões, de desconhecidos molda a percepção que a criança tem de si mesma de forma perigosa. A busca por validação, por likes e comentários positivos, torna-se a principal régua de sua autoestima. Isso pode levar a uma série de problemas psicológicos na vida adulta, como ansiedade, depressão e transtornos de imagem corporal.
A infância é o período fundamental para a construção de uma identidade autêntica, baseada em experiências reais, aprendizado e interações sociais presenciais. No entanto, quando essa fase é mediada por uma tela e um algoritmo, a criança pode desenvolver uma persona digital que não reflete quem ela realmente é, gerando uma profunda desconexão entre sua vida online e offline. A pressão para performar, para estar sempre conectada e interessante para a audiência, rouba a espontaneidade e a liberdade essenciais para o crescimento saudável.
A infância e a adolescência deveriam ser tempos de experimentação, erros e descobertas, mas a presença constante das câmeras e a consequente “performance” anulam essa possibilidade, forçando o amadurecimento precoce e uma preocupação excessiva com a imagem pública.
Outro efeito colateral é a nomofobia, medo ou ansiedade de ficar sem acesso ao celular ou à internet, que pode surgir cedo quando crianças se habituam à constante presença de telas e à expectativa de interações digitais. Paradoxalmente, o excesso de exposição pode coexistir com o abandono digital, quando pais ou responsáveis, embora conectados, deixam de acompanhar e orientar a vida online dos filhos. Nesse cenário, a criança está exposta tanto ao excesso de visibilidade quanto à ausência de proteção efetiva.
Projetos de lei voltados à proteção digital de crianças são necessários, por mais, que como foi falado, já temos legislações capazes de atender aos interesses desses menores, ainda resta a lacuna imposta pela introdução da internet em nossas vidas. No entanto, precisam nascer de diagnósticos sérios, e não de impulsos midiáticos ou interesses partidários. É inaceitável que se use o palco criado pela indignação pública para buscar visibilidade política, desviando o foco daquilo que realmente importa: a preservação da infância e da adolescência.
Não podemos ignorar o papel essencial das próprias plataformas digitais nesse cenário. Elas são as arquitetas do espaço onde essa adultização e exposição ocorrem. Seus algoritmos, desenhados para maximizar o engajamento e o tempo de tela, frequentemente promovem conteúdos que exploram a imagem de crianças, incentivando o ciclo vicioso de compartilhamento e monetização. A remoção de conteúdo que viola os termos de uso é apenas uma medida reativa.
As plataformas precisam adotar posturas mais proativas, investindo em ferramentas de inteligência artificial mais eficazes para identificar e sinalizar conteúdos potencialmente perigosos envolvendo menores, antes mesmo que eles se viralizem. Além disso, é imperativo que elas invistam mais em programas de educação para seus usuários, destacando os riscos do sharenting e promovendo um ambiente mais seguro para a infância. A responsabilidade não pode ser totalmente transferida para os pais e para a sociedade. As grandes empresas de tecnologia, com seus vastos recursos financeiros e tecnológicos, têm a obrigação ética e moral de proteger os usuários mais vulneráveis, em vez de lucrar com sua exposição. A pressão por uma regulamentação mais robusta precisa focar não apenas nos pais e influenciadores, mas também na responsabilização direta dessas empresas.
Qualquer proposta legislativa nesse campo deve ouvir conselhos de direitos de defesa da criança e do adolescente, comitês de proteção infantil, especialistas e organizações que estudam o assunto, que vivenciam esse tema, e que há anos denunciam abusos, muitas vezes sem serem ouvidos, sendo ignorados ou diminuído sua importância, como se fosse exagero o denunciado.
O Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente), atua na defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes, buscando garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, já emitiu recomendações importantes sobre uso de imagem de crianças na mídia e nas redes sociais. A SaferNet mantém dados e canais de denúncia valiosos, sobre diversos crimes que acontecem no mundo virtual, revelando a gravidade do problema no Brasil. Ignorar esses atores é desprezar conhecimento acumulado e evidências concretas.
A discussão sobre a necessidade de uma legislação específica para a proteção online de crianças não é exclusiva do Brasil. Em diversos países, o debate está em alta. A França, por exemplo, aprovou uma lei em 2023 que dá aos pais o direito de proibir a publicação de fotos de seus filhos nas redes sociais. A lei prevê punições para os pais que compartilharem excessivamente a vida dos filhos, incluindo a possibilidade de um juiz proibir a publicação de imagens ou, em casos mais graves, tirar a autoridade parental sobre os direitos de imagem.
Nos Estados Unidos, estados como Illinois têm projetos de lei que permitem que crianças processam os pais que lucram com sua imagem. Esses exemplos internacionais demonstram que a preocupação é global e que as respostas precisam ser igualmente inovadoras. A legislação brasileira, ao se inspirar nesses modelos, deve ser cuidadosa e atenta às particularidades de nossa cultura e de nosso sistema jurídico, mas o princípio de dar à criança a autonomia sobre sua própria imagem é um avanço necessário.
Enquanto não há uma lei específica para a proteção de crianças no ambiente online, precisamos usar os instrumentos existentes para proteger a infância: ações de conscientização nas escolas e comunidades; palestras para pais e responsáveis, educadores e equipe escolar; vídeos informativos nas redes sociais que mais são acessadas por esse público, como YouTube, Instagram e TikTok; campanhas de segurança digital que cheguem tanto aos adultos quanto às próprias crianças e adolescentes.
A educação digital deve começar na escola e em casa, ensinando crianças e adolescentes a serem cidadãos digitais críticos e conscientes. Isso vai além de simplesmente proibir o uso de telas. É fundamental ensinar-lhes sobre a privacidade, sobre os riscos de compartilhar informações pessoais e sobre o valor de sua imagem e reputação.
Para os pais, a conscientização deve focar no entendimento de que a internet não é um álbum de fotos familiar restrito. Qualquer imagem postada está, potencialmente, à disposição do mundo inteiro para ser copiada, alterada e utilizada sem controle. O oversharenting, muitas vezes, é motivado por um desejo genuíno de compartilhar a felicidade, mas é vital que os pais compreendam que essa felicidade pode ter um preço alto para o futuro dos filhos.
A “fofura” de hoje pode se tornar o constrangimento ou até o cyberbullying de amanhã. É preciso reconstruir a percepção cultural de que o valor de um momento não está na quantidade de curtidas que ele recebe, mas na memória e na conexão que ele cria no mundo real, longe dos holofotes digitais. A verdadeira proteção reside na capacidade de valorizar e resguardar a infância como um espaço sagrado e privado.
O combate à adultização e ao oversharenting não será vencido apenas com a letra fria da lei. É uma questão cultural, educativa e de responsabilidade coletiva, como bem traz o art. 227 da Constituição Federal, que consagra o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar a criança e ao adolescente os seus direitos. Crianças não são miniadultos, não devem se vestir de forma adulta, não devem agir de forma adulta. Crianças devem brincar, estudar, ter lazer, ser protegidas, ser tratadas com dignidade e respeito e não expostas aos desejos de pessoas mal intencionadas. Elas têm direito a uma infância segura, longe dos holofotes digitais e dos interesses de adultos que nada têm a ver com seu bem-estar.
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