Julia Lima de Oliveira E Gisele Aparecida Lima de Oliveira

Agosto lilás e a invisibilidade da violência vicária no Brasil

Postado em 27 de agosto de 2025 Por Julia Lima de Oliveira  Graduanda em Direito, Estagiária do Ministério Público Federal do estado de São Paulo. Integrante das Comissões de Direitos da Defesa Criança e do Adolescente, Direito de Família da OAB São Paulo, Comissão de Direitos Humanos da OAB Bauru. Autora de artigos sobre crianças e adolescentes e perspectiva de gênero.Por Gisele Aparecida Lima de Oliveira  Advogada, palestrante e administradora. Especialista em Direitos das Mulheres e em LGPD, Privacidade e Proteção de Dados. Membro da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial e da Comissão de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes da OAB SP, além de integrar a Comissão de Direitos Humanos da OAB Bauru. Voluntária no Programa OAB por Elas, prestando orientação jurídica gratuita a mulheres em situação de violência. Autora de artigos sobre direitos humanos, violência digital e de gênero.

O Agosto Lilás é, por excelência, o mês da conscientização e do enfrentamento da violência contra a mulher. A cor simboliza a luta contra a violência de gênero e serve para informar a sociedade sobre os tipos de violência. Foi instituído em 2006, para celebrar a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) em 7 de agosto, ele nos convida, ano após ano, a uma reflexão profunda sobre a urgência de erradicar a violência de gênero, fortalecer redes de apoio e ampliar as formas de proteção às mulheres.

Há quase duas décadas, a Lei Maria da Penha representa um marco legislativo fundamental, uma conquista civilizatória que trouxe visibilidade a uma chaga social profunda. No entanto, sua vigência nos mostra que a violência se adapta e assume novas roupagens, nem sempre visíveis no debate público. Uma das mais cruéis, insidiosas e silenciosas é a violência vicária, um fenômeno que permanece nas sombras da legislação e das políticas públicas brasileiras.

O conceito de “violência vicária” foi cunhado pela psicóloga e ativista argentina Sonia Vaccaro. Do latim vicarius, que significa “aquele que age em lugar de outro”, o termo descreve uma violência na qual o agressor, em vez de atacar a mulher diretamente, instrumentaliza filhos, familiares ou pessoas próximas para atingir a vítima. Na definição de Vaccaro, trata-se de uma violência contra mulheres perpetrada por homens, de forma direta ou indireta, que se utilizam de filhos, dependentes ou da rede de apoio como meios de manipulação, intimidação e controle. As táticas são variadas e traiçoeiras: ameaças de sequestro, uso de processos judiciais simulados e infinitas táticas de manipulação psicológica. O objetivo central do agressor não é apenas punir a mulher, mas perpetuar o seu domínio sobre ela, mesmo após o fim da relação conjugal. O que se busca é a destruição da identidade e da dignidade da vítima, em uma escalada de violência que pode culminar em tragédias irreparáveis.

As consequências da violência vicária são devastadoras e se manifestam em múltiplos níveis. Para as crianças, os traumas são profundos e duradouros, afetando seu desenvolvimento emocional, social e psicológico e com sérios riscos de perpetuação do ciclo de violência no futuro. A criança é submetida a um conflito de lealdade insuportável, sendo forçada a se posicionar contra a própria mãe, a figura de proteção e afeto. O dano é irreparável e a cicatriz na alma dessas vítimas-instrumentos é uma mancha que o tempo dificilmente apaga. Para as mães, o sofrimento psicológico é intenso e avassalador, podendo evoluir para quadros graves de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, isolamento social, tentativas de suicídio ou até mesmo o feminicídio. A violência vicária, portanto, é uma estratégia de poder que transforma o que deveria ser a base do afeto e da família em uma arma de destruição.

Apesar de sua prevalência e impacto dramáticos, o Brasil ainda não possui previsão legal específica para a violência vicária. Essa ausência legislativa gera uma lacuna que impede o reconhecimento adequado do fenômeno, dificultando a proteção efetiva das vítimas diretas (as mães) e das vítimas indiretas (crianças e familiares). Para enfrentar essa omissão, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.880/2024, de autoria da deputada Laura Carneiro, que propõe incluir a violência vicária no artigo 7º da Lei Maria da Penha. Essa medida é essencial, pois ao nomear e definir a violência, o Estado sinaliza sua existência e abre o caminho para a criação de mecanismos de proteção, como medidas protetivas e sanções mais severas.

A experiência da Espanha é exemplo, pois lá, a violência vicária já integra o catálogo de crimes relacionados à violência de gênero, garantindo maior efetividade na responsabilização dos agressores e estabelecendo políticas públicas de acolhimento às vítimas indiretas. Esse caminho demonstra que, quando o Estado reconhece a especificidade da violência, a resposta institucional se torna mais célere e eficaz, e a luta contra o agressor deixa de ser uma batalha solitária da vítima.

A falta de uma legislação específica permitiu que agressores utilizassem um mecanismo igualmente perverso: a alienação parental. A ativista Sonia Vaccaro, em seu trabalho em tribunais, observou um padrão recorrente entre as mulheres que denunciavam seus parceiros por violência doméstica ou abuso sexual contra os filhos, que como resposta, eram acusadas de alienadoras. Esse mecanismo funciona como uma tática de retaliação judicial. Em vez de investigar as denúncias, o sistema de justiça, por vezes desatento às dinâmicas de gênero, desloca o foco para a conduta da mãe, deslegitimando sua palavra e sua capacidade como cuidadora, transformando-a de vítima em ré.

No Brasil, essa prática ganhou força a partir da difusão da chamada “síndrome da alienação parental” (SAP), um conceito que, apesar de nunca ter tido reconhecimento científico consolidado pela comunidade médica e psicológica, foi formalizado pela Lei nº 12.318/2010. Essa lei, usada por agressores para intimidar mulheres, ameaçando acusá-las de alienação parental para obter a guarda dos filhos, instrumentalizou o direito de família para perpetuar o controle e a dominação. O uso distorcido dessa legislação representa uma das formas mais sofisticadas de violência vicária e, ao mesmo tempo, de violência institucional, pois o sistema de justiça é cooptado para reproduzir o ciclo de violência. Uma mudança legislativa é fundamental para desmantelar a máquina jurídica que historicamente tem silenciado mulheres e legitimado abusos.

O fenômeno da violência vicária se agrava quando encontra respaldo em instituições que, em tese, deveriam proteger as vítimas. Quando o Judiciário desacredita a palavra de mulheres e crianças, quando uma escola tolera práticas sexistas ou quando empresas ignoram denúncias de assédio, ocorre o que chamamos de violência institucional.

Um marco importante para compreender os desafios institucionais foi o emblemático caso Márcia Barbosa de Souza, estudante universitária assassinada em 1998, no estado da Paraíba, após um encontro com um deputado estadual. O crime, um exemplo clássico de feminicídio, escancarou a maneira como a violência contra mulheres era tratada no Brasil. Márcia foi morta por estrangulamento, seu corpo foi encontrado em um terreno baldio nos arredores da cidade, com diversos sinais de agressão, mas o caso ficou marcado não apenas pela brutalidade do crime, mas pela impunidade que se seguiu.

O acusado, parlamentar na época, foi protegido por seu foro privilegiado e por uma rede de conivências políticas. Anos de demora judicial e a falta de investigação adequada levaram a uma clara violação do dever de diligência do Estado em proteger mulheres. Em 2007, o caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, posteriormente, à Corte Interamericana, que condenou o Brasil por omissão e negligência. A Corte destacou que estereótipos de gênero, somados ao privilégio político do acusado, contribuíram para a falta de justiça. Como consequência, o Conselho Nacional de Justiça elaborou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que orienta magistrados a reconhecer as desigualdades estruturais entre homens e mulheres e a afastar estereótipos discriminatórios em suas decisões. Esse protocolo é hoje uma ferramenta essencial para que a justiça não reproduza violências e para que casos como o de Márcia não se repitam.

Nesse contexto, considerando que crianças e adolescentes são vítimas ou testemunhas dessas violências de gênero, também é fundamental compreender a diferença entre escuta especializada e depoimento especial, ambos previstos na Lei nº 13.431/2017. A escuta especializada é realizada por profissionais das áreas de saúde, educação ou assistência social, fora do ambiente judicial. Tem caráter acolhedor, pedagógico e protetivo, sendo voltada ao atendimento da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência. Seu objetivo não é produzir prova judicial, mas oferecer apoio e proteção imediata, minimizando o sofrimento e o trauma. O depoimento especial, por sua vez, ocorre no âmbito do processo judicial, conduzido por profissionais capacitados (psicólogos ou assistentes sociais), em ambiente apropriado e gravado em áudio e vídeo. Sua finalidade é a produção de prova válida no processo, evitando que a criança seja submetida a múltiplas inquirições que poderiam revitimizá-la e garantindo a validade jurídica da prova.

Compreender essa distinção é essencial para não transformar a escuta especializada em um interrogatório e para assegurar que o depoimento especial seja conduzido com a técnica e a proteção necessárias, garantindo tanto o direito da criança quanto a integridade da prova judicial.

Ademais, a ausência de reconhecimento legal da violência vicária não pode ser desculpa para a inércia estatal. Algumas medidas são urgentes para a prevenção e erradicação da violência contra a mulher e contra crianças e adolescentes. A capacitação obrigatória em gênero e direitos humanos para profissionais do sistema de justiça, segurança pública, saúde e assistência social é um passo inegociável. A aprovação do PL nº 3.880/2024, que tipifica a violência vicária, deve ser uma prioridade legislativa no que tange a violência de gênero. Urge o fortalecimento das redes de proteção, com centros de referência que ofereçam atendimento multidisciplinar (psicológico, jurídico e social) e a garantia de uma escuta especializada efetiva e um depoimento especial qualificado. É fundamental que as políticas públicas sejam baseadas em evidências, o que exige a produção e sistematização de dados sobre a violência vicária, por meio de integração ao PNAINFO. Por fim, o sistema de justiça deve adotar uma punição rigorosa, com decisões judiciais que reconheçam a gravidade da violência vicária e afastem a relativização de sua gravidade com justificativas como “conflito familiar”, uma falácia que apenas mascara a violência real.

A violência vicária é uma realidade que permanece nas sombras do debate público no Brasil. Mulheres, crianças, adolescentes e outros familiares, inclusive idosos, continuam sendo usados como instrumentos em jogos de poder que prolongam o sofrimento e perpetuam o controle dos agressores.

O Agosto Lilás é uma oportunidade de trazer esse tema à luz. Mais do que lembrar a Lei Maria da Penha, é hora de reconhecer que a violência contra a mulher assume múltiplas faces e que todas elas exigem uma resposta firme e coordenada do Estado e da sociedade. Se não enfrentarmos a violência vicária de forma sistêmica e integral, não haverá proteção plena para as mulheres nem para seus filhos. O silêncio e a omissão apenas perpetuam o ciclo de dor. O reconhecimento legal, aliado a políticas públicas efetivas, à mudança cultural e ao compromisso das instituições, é o caminho para garantir que nenhuma mulher seja punida por amar e proteger seus filhos. A luta por um Brasil mais justo passa, necessariamente, pelo fim da invisibilidade da violência vicária.

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