felipe travassos e jose durval

Antes que a fogueira vire inquérito; e o balão, sentença condenatória

Postado em 19 de junho de 2025 Por Felipe Travassos Sarinho de Almeida* | José Durval de Lemos Lins Filho** 
* Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa/Portugal (FDUL). Professor de Teoria do Estado, Direito Constitucional e Direito Público da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE).

** Especialista em Ciências Criminais e Mestre em Direito Público pela UFPE. Doutorando em Direito pelo PPGD/UNICAP - Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade de Pernambuco (UPE). Vice-Presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PE. Advogado Criminalista.

1.  Introdução: quando o forró encontra o direito ambiental

O estalar da sanfona, o cheiro de milho assado e o calor da fogueira iluminando o terreiro fazem parte da essência cultural brasileira. Os festejos juninos, especialmente no Nordeste, representam um patrimônio cultural de valor inestimável e são fundamentais para nossa identidade nacional. Contudo, diante das crescentes exigências ambientais da sociedade contemporânea, surge uma questão importante: qual o impacto ambiental dessas tradições?

Este artigo propõe uma análise que conecta tradição, legislação penal ambiental e sustentabilidade, buscando compreender como conciliar a preservação cultural com a responsabilidade ambiental.

2.  A fogueira como símbolo cultural e questão ambiental

Historicamente, a fogueira simboliza hospitalidade e acolhimento na cultura rural brasileira. Na tradição campesina, ela sinalizava que havia comida, oração e proteção para os viajantes. Representa nossa memória coletiva e identidade cultural.

Entretanto, sob a perspectiva ambiental, cada tronco queimado gera emissões de CO₂, material particulado fino (PM 2,5) e pode contribuir para o desmatamento irregular. O problema se agrava quando consideramos que junho coincide com o período seco em grande parte do país, elevando significativamente o risco de incêndios acidentais.

Do ponto de vista jurídico, a Lei 9.605/1998 tipifica no artigo 54 o crime de causar poluição que resulte ou possa resultar em danos à saúde humana, fauna ou flora (BRASIL, 1998). Quando a fogueira extrapola o ambiente doméstico e espalha fagulhas sobre áreas de preservação ou zonas urbanas densas, ela deixa de ser manifestação cultural para se tornar questão de responsabilidade penal ambiental.

As administrações municipais que ignoram essa realidade podem incorrer em omissão sancionável pelo Ministério Público, hoje equipado com tecnologia de monitoramento por satélite em tempo real.

3.  Balões juninos: tradição que virou crime

Se a fogueira ainda encontra certa tolerância social, o balão junino é inequivocamente caso de polícia. O artigo 42 da Lei 9.605/1998 proíbe fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios.

Embora a frequência de acidentes seja relativamente baixa, o potencial de dano é enorme: quedas sobre redes elétricas, refinarias, hospitais ou florestas podem causar tragédias de grandes proporções. Em 2024, o Corpo de Bombeiros de Pernambuco registrou aumento de 18% nos focos de incêndio relacionados a balões durante os festejos juninos.

  Além da tipificação penal específica, é importante lembrar que quem solta balão assume o risco de causar incêndio (dolo eventual), o que pode resultar em concurso de crimes ambientais com dano qualificado e até homicídio culposo, caso haja vítimas.

4.  Alternativas sustentáveis: aprendendo com outras experiências

Outros países com festivais similares desenvolveram soluções criativas para manter as tradições sem comprometer o meio ambiente. Em Sevilha, na Espanha, a substituição das fogueiras tradicionais por totens de LED reduziu em 72% as emissões relacionadas aos festivais sem diminuir o envolvimento da população.

Para o Brasil, algumas alternativas merecem consideração: a) Fogueiras modernizadas pelo uso de biomassa certificada, estruturas de contenção metálicas e sensores de temperatura com sistema de segurança automático; b) espetáculos aéreos alternativos, em que há a substituição dos balões tradicionais por shows de drones programados, eliminando os riscos de combustão e oferecendo espetáculos sincronizados com a música regional; e c) programas de compensação ambiental, estabelecendo que, para cada fogueira licenciada, realize-se o plantio de árvores nativas com monitoramento tecnológico.

Essas iniciativas podem ser formalizadas através de Termos de Ajustamento de Conduta com os Ministérios Públicos estaduais, transformando potenciais sanções em ações de eficiência socioambiental.

5.  Responsabilidade legal e fiscalização

O cenário regulatório atual não permite mais a negligência ambiental. Instituições financeiras públicas exigem avaliação socioambiental para financiamento de eventos culturais. Municípios que permitem fogueiras de grande porte sem licenciamento ambiental adequado podem ter verbas bloqueadas e seus gestores enquadrados por improbidade administrativa.

A fiscalização moderna utiliza drones com câmeras térmicas, aplicativos para denúncias e imagens de satélite para prevenção e controle. Para os advogados criminalistas, isso significa que a defesa requer perícia ambiental especializada, cadeia de custódia rigorosa de evidências e argumentação técnica cada vez mais sofisticada.

6.  Conclusão: conciliando tradição e responsabilidade

Propor a extinção dos festejos juninos seria um ataque ao nosso patrimônio cultural. Porém, manter práticas tradicionais sem considerar seu impacto ambiental é irresponsável e insustentável. O caminho está em modernizar essas tradições, mantendo sua essência cultural enquanto adotamos práticas ambientalmente responsáveis.

O futuro pertence a quem conseguir harmonizar a sanfona com a sustentabilidade, o balão com a inovação e a fogueira com a responsabilidade climática. É possível transformar o São João de potencial risco ambiental em exemplo mundial de festa sustentável.

Soltar balões e manter fogueiras sem controle já não representa mais o romantismo da cultura rural: representa enquadramento nos artigos 42 e 54 da Lei 9.605/1998 e multas ambientais. Gestores públicos, organizadores de eventos, empresas patrocinadoras e cidadãos precisam assumir a responsabilidade ambiental que nossa época exige.

Afinal, a responsabilidade não é das tradições nem dos símbolos culturais: é nossa, enquanto sociedade. E essa responsabilidade deve ser exercida continuamente, não apenas no papel dos relatórios. É hora de dançar quadrilha em harmonia com o planeta — antes que a fogueira vire inquérito e o balão, sentença condenatória.

Referências

BACEN. Resolução BCB nº 139, de 15 de junho de 2021. Dispõe sobre a Política de

Responsabilidade Socioambiental das instituições financeiras. Brasília, 2021.

CBMPE – CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DE PERNAMBUCO. Relatório Operacional

Junino 2024. Recife: CBMPE, 2024.

IBAMA. Plano Nacional de Fiscalização Preventiva Junina. Brasília: Ibama, 2023.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 13. ed. São Paulo: RT, 2020.

MPF – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Manual de TACs Socioambientais. Brasília:

Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2022.

PÉREZ, Manuel; MARTÍN, Álvaro. “Sustainability Innovations in Spanish Urban Festivals”. Journal of Cultural Heritage, v. 15, n. 3, 2022.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site