“Mil vez a sina de uma gaiola, desde que o céu pudesse oiá.” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Assum Preto)
Poucas metáforas capturam tão bem a ilusão de liberdade quanto o verso eternizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira na clássica “Assum Preto”. Na música, o pássaro, mesmo ferido e preso, prefere a sina de uma gaiola, desde que nela possa ao menos olhar o céu. Essa imagem poética, marcada pelo contentamento do pássaro mesmo diante da privação da liberdade, ilustra uma realidade menos lírica e mais concreta no mundo jurídico: o consentimento contaminado do consumidor brasileiro nos contratos de adesão.
Em essência, o contrato de adesão, definido pelo art. 54 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), é aquele cujas cláusulas são previamente estabelecidas pela parte economicamente mais forte, sem possibilidade real de discussão pelo aderente. Bancos, operadoras de telefonia, plataformas digitais e grandes varejistas são exemplos clássicos de empresas que recorrem a esse modelo. O consumidor, diante da necessidade prática de acesso ao serviço ou produto, limita-se a aceitar ou recusar o contrato como um todo.
É justamente aí que reside a armadilha: o marketing agressivo das grandes empresas cria o “céu” prometido, com anúncios de benefícios, facilidades e vantagens irresistíveis. Mas o que muitas vezes não se percebe são as “gaiolas” disfarçadas de oportunidades: cláusulas de fidelização, tarifas ocultas, restrições à rescisão e limitações desproporcionais de direitos. Disposições que, à luz do art. 51 do CDC, podem ser consideradas abusivas ou leoninas.
Essas cláusulas, embora formalmente aceitas pelo consumidor, carregam um vício oculto: o consentimento que as valida é muitas vezes contaminado. Não se trata de verdadeira manifestação livre da vontade, mas de uma adesão condicionada pela vulnerabilidade do consumidor e pelo apelo publicitário. Em outras palavras: o consumidor aceita a gaiola porque acredita que dentro dela poderá contemplar o céu criado pela propaganda.
Importa destacar que, em matéria contratual, o ordenamento jurídico brasileiro protege o equilíbrio entre as partes, reconhecendo a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva como limitações ao poder de estipulação da parte mais forte. Como reforça a doutrina, o sinalagma contratual não autoriza imposições unilaterais desproporcionais que esvaziem a liberdade negocial do aderente.
Por isso, a simples assinatura de um contrato não basta para legitimar cláusulas desproporcionais: o consentimento viciado pela assimetria informacional e pela posição de hipossuficiência não se traduz em aceitação legítima. O STJ tem entendimento pacífico e reafirma a possibilidade de revisão judicial de cláusulas abusivas, ainda que fruto de contrato formalmente assinado.
O consumidor, à semelhança do Assum Preto que prefere estar preso a estar cego, resigna-se às condições desleais de um contrato porque entende não haver alternativa. Mas essa resignação não pode ser tratada como verdadeira autonomia da vontade.
Em tempos de contratações celebradas por simples “cliques” ou “aceites”, o acompanhamento jurídico preventivo revela-se essencial. Não é luxo, mas medida de prudência, recorrer ao advogado antes da assinatura de um contrato de adesão: é esse olhar técnico que pode impedir que o consumidor troque sua liberdade pela promessa de um céu que nunca chegará.
A genialidade de Luiz Gonzaga e do advogado-compositor Humberto Teixeira, ao descreverem a resignação do pássaro, serve de alerta: no direito contratual, aceitar a gaiola nunca será manifestação válida da vontade quando essa escolha for fruto de ilusões estrategicamente construídas.
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