Introdução
A expansão da mobilidade elétrica no território nacional constitui etapa relevante no processo de transição energética, com reflexos diretos na infraestrutura urbana e condominial. A instalação de estações de recarga em edificações multifamiliares, contudo, demanda observância rigorosa de requisitos técnicos, legais e regulatórios, sob pena de exposição a riscos patrimoniais, pessoais e jurídicos, inclusive em face das disposições da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.
Nesse contexto, impõe-se também uma reflexão sobre os limites e as garantias do direito de propriedade no âmbito condominial. Embora o condômino detenha domínio sobre sua unidade autônoma, esse direito não é absoluto, devendo ser exercido em consonância com os interesses coletivos e com as normas que regulam o uso das áreas comuns. A compatibilização entre o uso individual da propriedade e a preservação da segurança e funcionalidade do condomínio será objeto de análise específica neste artigo, especialmente diante da crescente demanda por infraestrutura de recarga elétrica.
Aspectos Técnicos
A infraestrutura elétrica das edificações mais antigas, em sua maioria, não foi originalmente concebida para suportar a elevada carga energética demandada pelos dispositivos de recarga veicular. Os equipamentos destinados à recarga de veículos elétricos operam, em regra, com demanda energética superior àquela prevista para instalações convencionais, o que impõe a necessidade de solicitação formal de aumento de carga à concessionária local, nos termos da regulamentação ANEEL vigente.
Nesse contexto, a ausência de estudos técnicos aprofundados e específicos previamente à instalação de tais equipamentos pode ensejar riscos significativos à segurança e à funcionalidade do sistema elétrico, tais como interrupções no fornecimento de energia e, em casos mais graves, a deflagração de incêndios, com potenciais danos ao patrimônio e à integridade física dos ocupantes. A mitigação desses riscos exige projeto técnico específico, ART, elaborado por profissional legalmente habilitado, em conformidade com a ABNT NBR 5410 e demais normas correlatas.
Aspectos Regulatórios e Jurídicos
Nos moldes da Resolução Normativa ANEEL nº 1.000/2021, é incumbência do consumidor solicitar à distribuidora o aumento de carga sempre que houver previsão de consumo superior ao originalmente contratado. A inércia do condomínio em promover tal adequação pode configurar infração técnica, sujeita à sanção pela distribuidora, além de ensejar responsabilidade civil objetiva, nos termos do art. 37, §6º, da Constituição Federal, e descumprimento do dever de segurança previsto no art. 22 do Código de Defesa do Consumidor.
O síndico, enquanto representante legal da coletividade condominial, está juridicamente vinculado à adoção de medidas preventivas que assegurem a integridade das instalações e a segurança dos moradores, conforme preceitua o art. 1.348, incisos II e V, do Código Civil.
Recomenda-se, portanto, que o condomínio interessado na instalação de pontos de recarga promova: (i) estudo técnico de viabilidade elétrica; (ii) solicitação formal de aumento de carga à distribuidora; (iii) atualização do regimento interno, disciplinando o uso e o rateio dos custos; e (iv) implementação de rotinas de manutenção e inspeção periódica.
Direito de Propriedade versus Interesse Coletivo Condominial
O direito de propriedade, consagrado no ordenamento jurídico pátrio como direito fundamental pelo art. 5º, inciso XXII, da Constituição da República de 1988, não ostenta caráter absoluto. A Carta Magna, em seu inciso XXIII, expressamente condiciona o exercício da propriedade ao atendimento de sua função social, estabelecendo um equilíbrio entre a esfera individual e o interesse coletivo.
Nesse sentido, ao titular do domínio reconhece-se a prerrogativa de usar, gozar e dispor do bem, bem como o direito à sua defesa, todavia tais faculdades devem ser exercidas em consonância com os ditames da coletividade e os imperativos do bem comum. Assim, a propriedade não pode ser concebida como instrumento meramente voltado à satisfação de interesses privados, devendo, ao contrário, ser compreendida como instituto jurídico que, além de assegurar a autonomia do proprietário, também se destina a promover o bem-estar social e a preservar a convivência harmônica no seio da comunidade.
Essa limitação constitucional não se configura como restrição arbitrária, mas como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e da busca por uma ordem social justa, assegurando, de maneira equitativa, uma vida livre, digna e igualitária a todos os cidadãos.
Já a configuração jurídica do condomínio edilício consubstancia-se em uma forma peculiar de comunhão, na qual coexistem, de maneira indissociável, a propriedade exclusiva das unidades autônomas e a copropriedade das áreas comuns. Trata-se, pois, de uma estrutura de titularidade compartilhada, regida por normas específicas que visam harmonizar o exercício dos direitos individuais com os interesses coletivos.
Embora o condomínio não ostente personalidade jurídica própria nos moldes das pessoas jurídicas previstas no ordenamento, é pacífico na doutrina e na jurisprudência o reconhecimento de sua personalidade judiciária. Tal atributo lhe confere aptidão para figurar como parte em demandas judiciais, celebrar contratos e assumir obrigações, sendo representado, para esses fins, pelo síndico, cuja investidura decorre da deliberação assemblear e encontra respaldo legal no artigo 1.348 do Código Civil.
Essa capacidade de agir em juízo e de praticar atos da vida civil revela a complexidade institucional do condomínio edilício, que, embora não personificado, é dotado de funcionalidade jurídica própria, apta a assegurar a tutela dos interesses da coletividade condominial.
No âmbito do condomínio edilício, o exercício do direito de propriedade sobre unidade autônoma encontra limitações impostas pela legislação e pela convenção condominial, com vistas à preservação da segurança e funcionalidade das áreas comuns (arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil).
A instalação de infraestrutura de recarga que interfira em componentes comuns (quadro geral, prumadas, barramentos) configura obra em parte comum, exigindo aprovação por quórum qualificado em assembleia, conforme entendimento consolidado na jurisprudência. Nesse sentido, destaca-se decisão liminar do Tribunal de Justiça de Pernambuco (Processo nº 0010102-28.2025.8.17.9000), que autorizou a remoção de carregadores instalados sem deliberação condominial, diante do risco elétrico e da ausência de anuência coletiva.
De acordo com o desembargador Fábio Eugênio Dantas, a instalação de carregador veicular elétrico em condomínios precisa respeitar as exigências previstas no Código Civil. “A instalação de carregador elétrico veicular constitui, inequivocamente, obra em parte comum do edifício, com impacto direto na rede elétrica geral, aumentando significativamente a demanda energética do sistema. Tal instalação, portanto, dependia de aprovação prévia por dois terços dos condôminos, conforme expressamente determina o art. 1.342 do Código Civil. No caso em análise, tal aprovação jamais ocorreu consoante afirmado pelo próprio autor. (…) A autorização individual da síndica é manifestamente insuficiente para legitimar obra que impacta área comum do edifício”, destacou o magistrado.
Além da questão normativa, a decisão judicial também levou em consideração a segurança coletiva dos demais moradores. “A prova técnica evidencia que o sistema elétrico do condomínio, inicialmente projetado com transformador de 150 kVA, mostra-se insuficiente para a demanda atual. Mesmo com a aquisição de novo transformador de 225 kVA, o laudo indica que o sistema continuará operando próximo ao limite, não sendo seguro para suportar equipamentos de alta demanda energética como carregadores de veículos elétricos. Verifica-se, ainda, que o carregador do agravado está instalado em área correspondente à rota de fuga em caso de incêndio, potencializando os riscos à segurança coletiva”, enfatizou o desembargador Fábio Eugênio.[1]
Não há imposição legal que obrigue o condomínio a custear ou instalar pontos de recarga para uso exclusivo de condôminos. A deliberação sobre o modelo técnico e econômico (medição individual, ressarcimento, tarifa interna) compete à assembleia.
Importa registrar que há iniciativas legislativas em curso, como o Projeto de Lei nº 158/2025, que visa alterar a Lei nº 4.591/1964 para regulamentar a instalação de infraestrutura de recarga em unidades autônomas e dá outras providências[2].
O Projeto de Lei em comento propõe a atualização da Lei dos Condomínios (Lei nº 4.591/1964) com o objetivo de garantir ao condômino o direito de instalar infraestrutura de recarga para veículos elétricos em sua unidade autônoma, desde que respeitadas as normas técnicas, de segurança e a convenção condominial.
A proposição decorre da crescente demanda por mobilidade elétrica e da ausência de regulamentação específica, que tem gerado entraves injustificados à instalação de pontos de recarga em garagens privativas. A medida busca compatibilizar o exercício do direito de propriedade com o interesse coletivo, promovendo segurança jurídica e técnica.
O projeto estabelece que (i) A instalação será de responsabilidade do condômino, inclusive quanto aos custos e à conformidade técnica, (ii) será exigida a apresentação de ART ou RRT por profissional habilitado, (iii) a infraestrutura não poderá comprometer áreas comuns ou gerar impactos visuais e funcionais e (iv) a instalação coletiva dependerá de deliberação em assembleia condominial.
Além de fomentar a mobilidade sustentável e reduzir emissões poluentes, a proposta aproveita a matriz elétrica renovável brasileira e contribui para o cumprimento de metas ambientais nacionais e internacionais.
Ademais, legislações municipais, como a Lei nº 17.336/2020, do Município de São Paulo, que dispõe sobre a obrigatoriedade da previsão de solução para carregamento de veículos elétricos em edifícios (condomínios) residenciais e comerciais, já impõem exigências específicas para novas edificações[3].
Conclusão
Diante do exposto, verifica-se que a instalação de infraestrutura de recarga para veículos elétricos em condomínios edilícios demanda abordagem multidisciplinar, que conjugue os aspectos técnicos e de segurança da engenharia elétrica com os imperativos jurídicos da convivência condominial e da função social da propriedade.
O direito de propriedade, embora assegurado constitucionalmente, encontra limites legítimos quando exercido em ambiente coletivo, como é o caso do condomínio edilício. A compatibilização entre o uso individual da unidade autônoma e a preservação da segurança, funcionalidade e harmonia das áreas comuns impõe ao condômino o dever de observar as normas técnicas, a convenção condominial e as deliberações assembleares.
A atuação diligente do síndico, a elaboração de projetos técnicos adequados, a comunicação transparente entre os condôminos e o respeito às Resoluções da ANEEL e à norma da ABNT são medidas imprescindíveis para que a transição à mobilidade elétrica ocorra de forma segura, legal e equitativa.
Assim, conclui-se que a viabilidade da instalação de pontos de recarga em condomínios não se resume à esfera do interesse individual, mas deve ser compreendida como um processo coletivo, pautado pela legalidade, pela técnica e pela governança condominial responsável.
[1] https://portal.tjpe.jus.br/-/decis%C3%A3o-liminar-permite-que-condom%C3%ADnio-remova-carregador-de-carro-el%C3%A9trico-instalado-de-forma-irregular-por-morador?utm_source=chatgpt.com Acessada em 10/09/2025, às 20h21min.
[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2482575 Acessada em 10/09/2025, às 19h43min
[3] https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-17336-de-30-de-marco-de-2020 Acessada em 10/09/2025, às 20h41min
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