Outro dia, entre um café e uma correção de provas, dei de cara com um vídeo que me instigou a falar sobre o tema. Nele, uma moça, emocionada, estava levando seu bebê reborn ao pediatra, alegando que ele sentia dores e chorava muito. Fiquei ali, atônita, a assistir. Percebi que estamos vivendo o auge da modernidade líquida de Bauman[i], mas agora ela escorre entre fraldas imaginárias, perfis monetizados de bonecos no Instagram, maternidades para partos artificiais e projetos de leis proibindo o atendimento de bebês irreais pelo SUS e multa para quem furar fila com os referidos bebês.
Não tenho a pretensão de zombar de quem recorreu ao subterfúgio do bebê fake. Longe disso! Mas a psique humana é intrigante. Freud[ii] diria que tudo isso tem raízes lá na infância — no colo que faltou, no abandono simbólico, na dor não metabolizada. Jung[iii], mais generoso, nos lembraria que todo comportamento tem um símbolo e que, talvez, esses bonecos representem arquétipos do cuidado, da proteção, do maternar adiado ou transferido.
Mas o que me intriga mesmo é quando a fantasia quer tomar o lugar da realidade. Quando uma vaga de estacionamento destinada à gestante é disputada por quem carrega, no colo, um bebê de silicone. Ou quando, ao fim de um relacionamento, pretende-se discutir em juízo a guarda compartilhada de um boneco, quiçá com fixação de alimentos e agendamento de visitas.
Estamos, talvez, vivendo o que Sartre[iv] chamaria de angústia da liberdade: somos tão livres para sermos qualquer coisa, que alguns escolhem ser mães ou pais de plástico. Camus[v], observando de longe, talvez concluísse que só nos resta o riso trágico, a tentativa de encontrar sentido no absurdo. Afinal, se o mundo não faz sentido, criar um bebê de vinil pode ser uma resposta tão legítima quanto escrever uma tese ou plantar samambaias.
Mas… e a sociedade? Foucault[vi] gritaria da biblioteca: “quem define o que é normal?”. Basaglia[vii], mais revolucionário, lembraria que a loucura não mora apenas nos manicômios — às vezes, ela circula de carrinho de bebê pelas ruas, com chupeta e tudo, e ninguém se dá conta. Durkheim[viii] nos diria que o comportamento anômico nasce do colapso dos referenciais sociais. E Goffman[ix] complementaria: estamos todos encenando papéis. Entretanto, ultimamente o palco parece uma peça escrita por Kafka em parceria com um roteirista da Netflix.
Há dor nesse cenário. Mas também há apelo. A cultura digital encontrou nos bebês reborn um espaço entre a carência e a monetização. Há quem chore, há quem lucre, há quem processe. E por falar em processo, se o bebê não “nasce” como se pretendia, a solução é devolvê-lo ao criador e requerer indenização pelo abalo psicológico sofrido.
A linha entre o simbólico e o patológico está cada vez mais difusa. E, enquanto advogados discutem o destino jurídico de perfis infantis que jamais nasceram, me pergunto: será que ainda estamos falando de bonecos? Ou será que estamos apenas gritando, do nosso modo, por alguma forma de amor, permanência e sentido?
Não sei. Só sei que, agora, ao ouvir um choro agudo na fila da farmácia, já não me apresso tanto. Pode ser só a notificação do Instagram de um bebê que não respira, mas viraliza.
[i] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[ii] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
[iii] JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
[iv] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 2007.
[v] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2004.
[vi] FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2006.
[vii] BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[viii] DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[ix] GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2012.
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