Aline Alves dos Santos

Da aldeia à Universidade: Resistências e desafios dos estudantes indígenas no Brasil

Postado em 08 de outubro de 2025 Por Aline Alves dos Santos Aline Alves é graduanda do 3º período de Direito pela FICR e orgulhosamente indígena Xukuru do Ororubá. Com dedicação aos estudos, busca adquirir experiência prática e construir uma carreira sólida no Direito. Sua trajetória é inspirada na força e nos valores de sua etnia.

A presença indígena nas universidades brasileiras representa uma conquista histórica. Ela resulta da mobilização de movimentos sociais, da luta das comunidades e da consagração constitucional de 1988, que reconheceu os direitos originários dos povos indígenas às suas culturas, línguas, terras e modos de organização social. No entanto, ainda que o ingresso de estudantes indígenas no ensino superior tenha aumentado nas últimas décadas, a inclusão permanece marcada por profundas desigualdades e pela reprodução de práticas institucionais que dificultam a permanência e o pleno reconhecimento desses sujeitos como parte integrante da vida acadêmica.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2021 havia aproximadamente 46.252 estudantes indígenas matriculados em cursos superiores. Esse número é cinco vezes maior do que o registrado em 2010, o que revela a efetividade parcial das políticas de cotas e de programas como o Prouni e o Fies. Entretanto, o crescimento quantitativo não elimina os obstáculos estruturais: a evasão ainda é alta e a representatividade indígena entre os corpos docentes permanece mínima. Apenas 428 professores indígenas foram identificados no mesmo período, o que demonstra uma lacuna significativa e compromete a diversidade epistemológica dentro das universidades.

Existem iniciativas no Brasil para o ensino superior indígena, como a Faculdade Indígena Intercultural (FAIND) da Unemat em Mato Grosso, a primeira deste tipo no país, e discussões sobre a criação de uma Universidade Indígena em nível nacional, que visa valorizar a cultura originária, promover a troca de saberes e o desenvolvimento sustentável, embora ainda esteja em fase de consulta pública. Além disso, diversas universidades federais oferecem vestibulares e vagas específicas para estudantes indígenas, como a UFRR, UFPA, UFRJ e a própria UnB. Visando essas iniciativas em alguns estados do Brasil, devemos considerar que em Pernambuco não há instituição de ensino superior voltada a povos indígenas. O estado possui a quarta maior população de povos originários do país, e, por isso, tais instituições precisam se abranger em todo o território brasileiro.

Entre os principais desafios enfrentados pelos estudantes indígenas está o acesso desigual às condições de permanência. Muitos vivem em comunidades distantes dos grandes centros urbanos, onde estão concentradas as instituições de ensino. Isso exige deslocamentos longos, altos custos com transporte e, muitas vezes, a necessidade de deixar suas aldeias para viver em cidades, o que gera dificuldades de adaptação cultural e emocional. A esses fatores somam-se a falta de moradia estudantil adequada, a ausência de políticas de alimentação e a precariedade de programas de assistência estudantil voltados às especificidades indígenas.

A dimensão econômica é apenas uma parte do problema. A estrutura curricular excludente também representa um obstáculo importante. Os cursos de graduação, em sua maioria, são elaborados sob um viés eurocêntrico, baseados em epistemologias ocidentais que desconsideram os saberes tradicionais e o pluralismo cultural do Brasil. A ausência de conteúdos que valorizem a história, a cultura e os sistemas de conhecimento indígenas reforça a sensação de deslocamento dos estudantes e perpetua o silenciamento histórico desses povos no espaço acadêmico. Embora a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996) defendam o pluralismo de ideias, sua implementação concreta ainda é limitada.

A falta de representatividade docente agrava esse quadro. Segundo estudos recentes, menos de 8% dos professores de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, da terra e biológicas são negros ou indígenas, enquanto a maioria absoluta, cerca de 90%, é composta por docentes brancos. Entre as mulheres negras, pardas e indígenas, esse número cai para 2,5%. Essa desigualdade revela a dificuldade de inserção de professores indígenas nas universidades e limita a produção acadêmica comprometida com outras matrizes epistemológicas. O resultado é um ambiente que tende a marginalizar visões de mundo não hegemônicas, enfraquecendo o potencial emancipatório da educação superior.

Outro aspecto relevante diz respeito ao preconceito e à discriminação enfrentados dentro das universidades. Muitos estudantes indígenas relatam sofrer estigmatização, invisibilização ou mesmo racismo explícito, o que gera impactos emocionais e psicológicos. Esse cenário contrasta com os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, e art. 5º da Constituição Federal), além de violar tratados internacionais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura aos povos indígenas o direito a uma educação compatível com suas culturas, tradições e necessidades.

O impacto dessas dificuldades não é apenas individual. Cada estudante indígena que chega à universidade carrega consigo o peso simbólico da representatividade coletiva. Seu êxito ou fracasso repercute em toda uma comunidade, que enxerga na formação acadêmica uma ferramenta de fortalecimento cultural e de defesa dos direitos coletivos. Por isso, pensar em políticas de inclusão para estudantes indígenas é também repensar o papel da universidade enquanto espaço público voltado à promoção da justiça social e do desenvolvimento plural do país.

Do ponto de vista jurídico, é necessário reconhecer que a efetivação do direito à educação superior para povos indígenas exige não apenas a ampliação de vagas, mas também a implementação de políticas de permanência robustas. Isso inclui a criação de programas específicos de bolsas, moradia estudantil, assistência psicossocial, adaptação curricular e incentivo à contratação de docentes indígenas. A Constituição, em seu artigo 206, estabelece o pluralismo de ideias e a valorização dos profissionais da educação como princípios do ensino nacional. A inobservância desse mandamento representa não apenas uma falha política, mas também uma violação jurídica.

Portanto, o ingresso indígena no ensino superior não pode ser tratado como um favor ou como mera concessão estatal. Trata-se de uma exigência democrática e constitucional, que deve ser compreendida como parte do projeto de construção de uma sociedade plural, justa e inclusiva. Reconhecer e enfrentar as dificuldades enfrentadas por esses estudantes é condição indispensável para que a universidade cumpra sua função social e se transforme em espaço de emancipação e não de exclusão.

Em última análise, cada estudante indígena que resiste e permanece na universidade é a prova viva de que a educação é um ato político. Sua presença questiona a lógica de exclusão, denuncia a colonialidade do saber e reafirma que os povos originários têm não apenas o direito de estar nesses espaços, mas também a responsabilidade de transformá-los. A universidade que se abre para a diversidade não perde sua identidade acadêmica; ao contrário, torna-se mais rica, mais crítica e mais alinhada ao projeto constitucional de um Brasil verdadeiramente democrático.

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