demetrius henrique da silva oliveira

Decidir sem escutar: o avanço das decisões padrão e o colapso silencioso do contraditório

Postado em 26 de junho de 2025 Por Demetrius Henrique da Silva Oliveira  Advogado. OAB/PE n° 33.623. Pós-graduado em Direito e Processo Civil. Especialista em responsabilidade civil e indenizações por danos pessoais. Ex-presidente da OAB Subseccional Carpina/PE, triênio 2022–2024.

Um fenômeno que traduz com nitidez o esvaziamento dos processos judiciais é a proliferação das decisões padrão ou genéricas no judiciário brasileiro. Sob a aparência de um real exame do mérito, vem se consolidando uma prática que compromete o núcleo democrático do processo: a substituição do dever de ouvir atenciosamente as partes para apreciar e confrontar os argumentos apresentados, pela reprodução de padrões através de decisões mecânicas e genéricas. É o avanço de um modelo de jurisdição que, em nome de uma falsa eficiência da atividade jurisdicional, abdica do essencial, julgar com profundidade, com responsabilidade e, sobretudo, com escuta qualificada.

O contraditório, concebido como direito à influência efetiva no convencimento do julgador, tornou-se, em muitos casos, um ritual vazio. Petições são recebidas, prazos são abertos, manifestações são juntadas aos autos, mas não são lidas com atenção, tampouco enfrentadas com seriedade. A resposta judicial, que deveria refletir o diálogo entre as partes e o Estado, surge como um texto automatizado e desconectado da complexidade da causa. Decidir, hoje, muitas vezes se resume a citar um precedente, inserir uma ementa genérica ou repetir um modelo previamente construído. Julga-se por aproximação, não por compreensão.

Essa lógica decisória não se instala por acaso. Ela decorre de uma cultura institucional que valoriza a quantidade em detrimento da qualidade. Metas de produtividade, prêmios por volume de julgamentos e mecanismos de aferição estatística incentivam os magistrados a se tornarem gestores do acervo, e não intérpretes do direito. O processo passa a ser visto como um fardo, e não como instrumento de realização da Justiça. Diante disso, o julgador aprende a se livrar do processo, e não a resolvê-lo.

Não são raras as decisões que, mesmo diante de teses relevantes, se limitam a afirmar que “a parte não se desincumbiu do ônus de provar os fatos constitutivos do direito alegado”, e, em sequência, citam uma jurisprudência sem o verdadeiro esforço para verificar se o precedente invocado realmente dialoga com a situação fática apresentada. A jurisprudência deixa de ser fonte interpretativa para se tornar argumento de autoridade, um escudo para proteger o julgador do dever de argumentar. E assim se rompe, silenciosamente, o pacto processual legal que exige coerência argumentativa e respeito à singularidade de cada processo.

A consequência é grave: o processo deixa de ser um ambiente de escuta e se transforma em procedimento. As partes falam, mas não são ouvidas. Apontam distinções, mas estas são ignoradas. Questionam teses, mas recebem respostas prontas ou subjetivas. O contraditório, que deveria assegurar a construção dialética da decisão, é reduzido a formalidade. E o dever de fundamentar, previsto no art. 489 do Código de Processo Civil, é esvaziado por uma prática que o contorna com habilidade técnica, mas sem densidade reflexiva.

É evidente que o Judiciário enfrenta sobrecarga e desafios organizacionais. Mas nenhum desses fatores justifica a opção pela superficialidade deliberada. O juiz que ignora os argumentos da parte sob um fundamento isolado de que “a matéria já foi enfrentada em casos semelhantes” abdica da própria função. Julgar é ouvir. É responder. É ponderar. É, acima de tudo, responsabilizar-se pela palavra que põe fim ao litígio.

Uma jurisdição que despreza o conteúdo dos processos e produz julgados superficiais, caminha para um desastre institucional sem enxergar as consequências danosas para o jurisdicionado. E o juiz que decide por modelo, sem enfrentar o mérito, atua mais como despachante do sistema do que como garantidor de direitos.

Não se trata de pedir decisões longas ou prolixas. Trata-se de exigir o dever inerente a atividade judicante: que o julgador leia, compreenda e enfrente, com honestidade intelectual, os argumentos que lhe são apresentados. Que resista à tentação da sentença automática. Que compreenda que cada processo traz, por trás do número, uma história humana, e que é a esse drama que ele deve servir.

O que se espera da jurisdição não é apenas que diga a última palavra, mas que diga a palavra justa, aquela que nasce do confronto honesto com os argumentos das partes. Decidir nunca deve ser um gesto de poder, mas um exercício de serviço à ordem pública e à estabilidade das relações sociais.

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