Daniele Maria Pedrosa da Silva 1

Entre laudos, filas e lágrimas: Os desafios cruéis da revalidação do BPC para pessoas com autismo

Postado em 06 de agosto de 2025 Por Daniele Maria Pedrosa da Silva Acadêmica de Direito, ex-Conselheira Tutelar do Recife -PE, Educadora Social de profissão, Ativista no Direito da Mulher e no Combate à Violência Contra Mulher. Defensora nos Direitos da Pessoa Com Deficiência e Autismo. Mãe Atípica por Amor.

Nem todo mundo sabe o que é o autismo. E, entre os que ouviram falar, nem todos compreendem de fato o que essa condição representa na vida de quem a vivencia — e, principalmente, de quem cuida, ama e protege alguém diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

O autismo não é uma doença. É uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por uma série de manifestações que podem variar amplamente entre os indivíduos, incluindo dificuldades de comunicação, comportamentos repetitivos, hiperfoco, sensibilidade sensorial e desafios nas interações sociais. O que chamamos hoje de “espectro” representa justamente essa variação — há pessoas autistas que precisam de suporte intenso e constante para atividades básicas do cotidiano, enquanto outras desenvolvem certa autonomia, ainda que com desafios invisíveis aos olhos de uma sociedade pouco preparada para reconhecer e acolher a diferença.

Durante muito tempo, o autismo foi negligenciado pelo próprio sistema de saúde. O olhar biomédico, normativo e padronizador excluiu subjetividades, negou escuta às famílias e silenciou as experiências das infâncias e adolescências neurodivergentes. Hoje, felizmente, o número de diagnósticos tem aumentado — não porque o autismo “aumentou”, mas porque finalmente começamos a nomear e enxergar o que sempre esteve diante de nós.

E é diante dessas realidades que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) surge como um recurso de extrema importância para muitas famílias. Previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o BPC garante um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência ou pessoas idosas com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. No caso de crianças e adolescentes autistas, o benefício representa muito mais do que um apoio financeiro. Ele viabiliza terapias, medicamentos, alimentação específica, deslocamentos, cuidados integrais e, sobretudo, a possibilidade de existir com um mínimo de dignidade.

Mas a realidade está longe de ser digna.

Para acessar o BPC, as famílias passam por um processo doloroso de avaliação da deficiência e da renda. Até aqui, já há sofrimento. Mas o maior abismo se impõe quando chega a fase da revalidação periódica do benefício — momento em que o INSS exige nova comprovação da condição e da vulnerabilidade social. A crueldade se revela nesse instante.

Apesar de o autismo ser uma condição permanente, muitas mães atípicas são obrigadas a enfrentar, ano após ano, o desafio de provar novamente que seus filhos não “deixaram de ser autistas”. Como se fosse possível, de uma hora para outra, cessarem as crises sensoriais, as estereotipias, as dificuldades de interação e as necessidades de apoio multidisciplinar. Como se fosse possível “curar” o que nunca foi uma doença. E, pior: como se a maternidade atípica já não fosse, por si só, exigente e solitária o suficiente.

As perícias exigidas pelo INSS não apenas ignoram os saberes das mães e responsáveis, como frequentemente desqualificam laudos médicos, pareceres psicológicos e diagnósticos emitidos por equipes especializadas. Mães que carregam nas costas o cuidado integral por uma criança que não dorme, que não fala, que não consegue frequentar a escola, precisam ouvir de peritos despreparados que “não parece tão grave”. Muitas vezes, sequer há escuta — há pressa, descaso, desconfiança. O exame pericial se transforma numa arena de humilhação e violência simbólica.

Esse processo é um teste de resistência. São horas nas filas dos CRAS, dias de espera por agendamento no Cadastro Único, semanas tentando juntar documentos e comprovar rendas inexistentes. Muitas vezes sem sequer contar com laudos atualizados, já que o próprio SUS não consegue dar conta da demanda de avaliação e acompanhamento especializados. A contradição é tamanha que o Estado, que falha em fornecer serviços adequados, exige do cidadão aquilo que ele mesmo não garante.

No meio de tudo isso, estão as mães. Mulheres que largaram empregos para se dedicar ao cuidado, que enfrentam o abandono da paternidade, que perderam rede de apoio, que deixaram de ser vistas como profissionais, amigas ou filhas. São elas que comparecem às entrevistas sociais, que enfrentam o preconceito nas escolas, que disputam uma vaga de atendimento multidisciplinar, que alimentam, medicam, acolhem e protegem seus filhos todos os dias — mesmo quando ninguém mais o faz.

Revalidar o BPC, nesse cenário, é mais do que um protocolo administrativo: é um atentado à dignidade. É um processo de revitimização constante. Porque cada negativa do INSS não é apenas uma suspensão de benefício — é a negação do reconhecimento da deficiência, da realidade da família, da vida da criança.

A verdade é que o Estado brasileiro tem se valido de mecanismos cada vez mais burocráticos e inóspitos para dificultar o acesso aos direitos. E, nesse jogo, quem perde é sempre quem mais precisa. Enquanto o discurso político fala em inclusão, as políticas públicas permanecem falhas, e os profissionais, muitas vezes, se tornam carrascos do sistema que deveriam humanizar.

Apesar disso, há algo que resiste. Há algo que se recusa a sucumbir.

As mães atípicas seguem. Com suas dores, seus cansaços, suas lágrimas caladas e suas lutas cotidianas. Elas seguem porque sabem que seus filhos precisam de alguém que enfrente o mundo. Alguém que grite quando ninguém mais escuta. Alguém que lute contra a máquina desumanizadora do Estado. Alguém que transforme em verbo o que muitas vezes se apresenta apenas como luto.

Esse artigo é para elas. Para todas as que já foram desacreditadas por um perito, desrespeitadas por um técnico, invisibilizadas por um gestor. Para todas que já ouviram que estavam exagerando, que eram superprotetoras, que “não parecia tudo isso”. Para as que já entraram no sistema chorando e saíram desamparadas. Para aquelas que, mesmo sangrando, não pararam de lutar.

Humanidade, afinal, só será possível quando a gente reconhecer todas as formas de existência. Inclusive aquelas que o sistema insiste em negar.

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site