Ewerton Mendonca Figueredo

Entre o laudo e a toga: Desafios da valoração da prova pericial no processo civil previdenciário

Postado em 17 de setembro de 2025 Por Ewerton Mendonça Figuerêdo Advogado; Ouvidor Especial de assuntos previdenciários da OAB Pernambuco; Especialista em processo civil previdenciário e direito previdenciário (ESMAFE/PR, PUC/RS); Membro da Comissão de Direito da Seguridade Social e da Comissão de Igualdade Racial, ambas da OABPE.

“Nenhum outro som no ar, para que todo mundo ouça.” Sirvo-me de uma licença poética ao citar o trecho da música As Ayabás, de Maria Bethânia, para dar início a um tema que exige silêncio, escuta e, sobretudo, atenção.

Algumas verdades são difíceis de encarar. Falar sobre elas incomoda, eu sei. Mas o silêncio só perpetua o equívoco.

E aqui não se trata de mera crítica: trata-se de construir um diálogo reflexivo, que ultrapasse o tecnicismo processual, englobando a advocacia e magistratura, na defesa de segurados/jurisdicionados.

Quantas vezes um laudo pericial parece encerrar a discussão processual, como se o juiz estivesse irremediavelmente vinculado ao parecer técnico do perito? A militância responde sem hesitar: inúmeras.

Em não raras ocasiões, essa adesão acrítica resulta em improcedência, justificada sob o manto sedutor da celeridade.

Eis que uma retórica incômoda surge: estaria o perito judicial regendo, em verdade, o processo previdenciário por uma delegação atécnica? Até onde pesa a omissão — ou mesmo a ação — de juízes e advogados na consolidação deste vício?

Tal fato transmite a ideia de uma terceirização da jurisdição quando há a simples homologação da prova técnica, sem contradita-la. Ignora-se todo cotejo de laudos e provas carreados nos autos – muitas vezes emanados do SUS – para se endeusar o laudo judicial do perito, fruto de uma perícia que não chega, muitas vezes, aos 10 (dez) minutos.

O temor da advocacia militante é se deparar com uma sentença que, ignorando o contraditório e o histórico de outras provas, sinaliza: “Dispensado o relatório, acolho o laudo pericial de ID n° XYZ, julgando improcedente a ação, com lastro no art. 487, I do CPC.”

Ao se materializar isto, a figura essencial do Magistrado cinge-se a um mero agente homologador, tratando o laudo pericial como verdade absoluta, transformando o processo em um instrumento de injustiças, sobretudo em matérias previdenciárias, onde, muitas vezes, o perito médico desconsidera, por exemplo, a realidade social do segurado.

O papel da prova técnica tem sido confundido pelos operadores do direito, uma vez que ela é um instrumento técnico de auxílio ao Juiz, para formação do livre convencimento motivado como desdobramento da garantia constitucional do devido processo legal e não um ato próprio da jurisdição, como o é a decisão judicial.

O Juiz não é um refém da perícia. O laudo pericial deve ser interpretado em conjunto com os demais elementos probatórios dos autos, garantindo ao magistrado a sua independência judicial através de uma análise crítica, o que não ocorre quando há uma decisão automática.

Ao se apoiar exclusivamente no laudo, o juiz esvazia o contraditório e as partes deixam de ter efetiva influência sobre a formação da convicção judicial.

O contraditório exige que o juiz escute, pondere e fundamente, não que apenas reproduza o que o perito disse.

A toga não pode ser terceirizada.

Um paradoxo surge e não posso deixar de registrar: Muitos dos nossos processos são carreados de laudos médicos e prontuários emanados do Sistema Único de Saúde – SUS.

A Constituição de 1988 estruturou a Seguridade Social em três pilares: Saúde, Previdência e Assistência. O SUS é a concretização da saúde como direito fundamental, e sua atuação não se limita ao atendimento médico-hospitalar. Ele produz documentos oficiais, exames, relatórios e laudos que refletem a situação clínica real dos cidadãos.

Em minha ótica, os laudos do SUS não são “meras declarações”, mas verdadeiros atos administrativos dotados de fé pública, elaborados por profissionais da rede que integram uma estrutura constitucional de proteção social.

Tais documentos revelam o acompanhamento contínuo da doença/incapacidade do segurado, muitas vezes com riqueza de detalhes que o nenhum laudo pericial alcançaria.

Na prática temos que o laudo judicial, fruto de uma perícia superficial, é tratado como “verdade técnica inquestionável”. Por outro, o laudo do SUS, fruto de anos de acompanhamento clínico, é frequentemente ignorado ou relegado ao segundo plano – se chegar a ser analisado. Isso gera um cenário de inversão de prioridades: a prova mais densa e constitucionalmente legitimada perde espaço para a mais superficial.

O sentimento que tenho, quando me deparo com casos assim, é como se o Judiciário estivesse dizendo: “não confio nos documentos do SUS, emanados do próprio Estado, o qual integra o sistema de seguridade que a Constituição me manda proteger”.

Se um previdenciarista que se preze nunca parou para refletir tal fato, dado o silêncio ensurdecedor que sou tomado quando faço tal reflexão, oriento a recalcular a rota e repensar a atuação processual, direcionando-a, efetivamente, a concretização dos direitos na busca de uma justiça social.

Logo, se há uma desconsideração do tratamento médico dos segurados oriundos de atos do SUS, há uma violação própria da lógica constitucional da Seguridade Social, registre-se.

A situação é ainda mais preocupante quando, trazendo o foco para o microssistema dos JEFs, a formação da coisa julgada, alicerçada em laudos superficiais, traz uma consequência prática e irreversível da adesão acrítica ao consignado pelo perito judicial, prejudicando, sobremaneira, o direito dos segurados, dada a impossibilidade rediscussão, via ação rescisória, como regra.

Mas cuidado, não afirmo que os laudos do SUS devem substituir uma perícia judicial, muito pelo contrário, deve-se valorar ambas as provas, conjuntamente, sem desprezar a densidade e continuidade da prova médica emanada, administrativamente, pelo sistema de seguridade constitucional no acompanhamento médico do jurisdicionado.

Tecnicamente, o julgador, na formação do seu livre convencimento, não esta vinculado ao laudo do perito, sobretudo quando, perscrutados os autos, há um vasto acervo de laudos e documentos médicos que atestam a incapacidade, diante das diversas restrições as atividades laborativas ali consignadas.

Processualmente, não existe uma hierarquia de provas, como reforçado, inclusive, em diversas decisões da TNU. Mas não se pode admitir a sacralização da perícia médico-judicial em detrimento a verdade real.

Na dúvida, no âmbito do Direito Previdenciário, aplica-se o princípio do in dubio pro misero, segundo o qual a norma deve ser interpretada em favor do segurado, a fim de resguardar – e não defenestrar – o seu direito fundamental à proteção social, o que se torna ainda mais relevante quando a decisão judicial se limita a reproduzir o laudo do perito.

Logo, advocacia e magistratura devem dialogar, sinergicamente, em duplo som, conferindo cadência à proteção social, quase como um canto em perfeito equilíbrio. Sem isso, o processo perde a harmonia e desafina em injustiça, deixando de concretizar direitos fundamentais no âmbito previdenciário.

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