Augustus Scagliarini

Igualdade racial não é responsabilidade exclusiva da população negra

Postado em 15 de julho de 2025 Por Augustus Scagliarini Cientista Político. Pesquisador. Membro da Comissão de Heteroidentificação da UFPE. Membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PE. Mestrando em Administração e Desenvolvimento (PPAD/UFRPE).

A promoção da igualdade racial, conforme preconizado pelo artigo 5º da Constituição Federal, não pode continuar sendo concebida como um encargo exclusivo das pessoas negras. Embora tenham sido — e ainda sejam — protagonistas centrais na resistência ao racismo estrutural e institucional, impõe-se à sociedade, em sua inteireza, a responsabilidade de atuar ativamente na superação desse sistema excludente.

É necessário ultrapassar a retórica do “não ser racista” e assumir o compromisso jurídico, político e ético de ser antirracista. A omissão — especialmente por parte da população branca, que historicamente ocupou e ainda ocupa posições de privilégio — não é neutra. Em contextos de desigualdade sistemática, a neutralidade favorece a manutenção da opressão.

O reconhecimento dos privilégios decorrentes da branquitude não se constitui em julgamento moral, mas sim em análise sociológica e jurídica da estrutura social brasileira. Esses privilégios manifestam-se nas oportunidades de ascensão, no acesso à educação e ao emprego, na seletividade penal, no tratamento midiático e até mesmo nas estruturas de poder político, econômico e institucional. Por isso, a atuação antirracista das pessoas brancas deve ocorrer de forma contundente e deliberada, sobretudo nos espaços de deliberação, representação e autoridade: no Poder Judiciário, nos parlamentos, nas universidades, nos conselhos institucionais e na iniciativa privada.

Não se trata de protagonizar lutas que não lhes dizem respeito de forma vivencial, mas de usar seus espaços de escuta e influência para romper com as estruturas discriminatórias. É preciso reconhecer, com maturidade política, que nem toda pessoa negra é, automaticamente, aliada da causa racial, assim como nem toda pessoa branca é inimiga do avanço civilizatório que a igualdade racial representa. A luta antirracista deve ser entendida como um dever coletivo, uma vez que o racismo estrutura as relações sociais e jurídicas no Brasil.

A interseccionalidade, conceito jurídico e sociológico desenvolvido por Kimberlé Crenshaw (1989), e resgatado no contexto latino-americano por intelectuais como Lélia Gonzalez (1983), revela a complexidade da opressão sofrida por sujeitos que se encontram na interseção entre múltiplas vulnerabilidades — como raça, gênero, classe e orientação sexual. Assim, uma mulher negra não enfrenta apenas o machismo; enfrenta o machismo racializado. Um homem negro não apenas lida com a desigualdade econômica, mas também com a presunção de periculosidade, alimentada por séculos de escravidão e exclusão.

Qualquer política pública que se pretenda igualitária deve considerar esses múltiplos marcadores sociais de diferença. A negação da interseccionalidade gera políticas inócuas, que beneficiam apenas parcelas já relativamente incluídas dos grupos oprimidos.

Ademais, é preciso desconstruir discursos meritocráticos que desconsideram o ponto de partida desigual imposto por séculos de colonização, escravização e segregação. A meritocracia, quando desvinculada de ações afirmativas e de reparação histórica, serve apenas para reproduzir e legitimar as desigualdades existentes.

A luta pela igualdade racial, nesse contexto, não será efetivada enquanto a branquitude permanecer inerte ou restrita ao discurso. O antirracismo exige comprometimento institucional, revisão de práticas, financiamento de políticas de inclusão e reequilíbrio de representações sociais.

A Constituição de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III), impõe um dever jurídico de combate à discriminação racial (arts. 3º, IV; 5º, XLI; 7º, XXX e XXXI). Tais mandamentos se articulam com o princípio da igualdade substancial (art. 5º, caput), demandando do Estado e da sociedade ações afirmativas para corrigir desigualdades históricas.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em decisões como a ADPF 186

(ações afirmativas nas universidades públicas) e o julgamento da ADO 26 (criminalização da homofobia e da transfobia com base na Lei nº 7.716/89), reforça que a omissão estatal diante de discriminações sistemáticas constitui violação à Constituição.

A igualdade racial, enfim, não será alcançada apenas com o esforço das vítimas do racismo. Ela exige o comprometimento ativo dos que, por muito tempo, foram poupados de seus efeitos. Nesse cenário, as pessoas brancas têm papel essencial — não como protagonistas, mas como aliadas responsáveis, conscientes e atuantes.

Referências 

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro / Pólen, 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex.

University of Chicago Legal Forum, 1989.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, 1983.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 186/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,

Tribunal Pleno, j. 26.04.2012.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 13.06.2019.

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