A Reforma Tributária, amplamente debatida, transformará de maneira profunda a realidade econômica e social. Os desafios impostos para os próximos anos atingirão todos, porém os pequenos negócios e os trabalhadores pejotizados serão particularmente impactados de forma negativa. O que inicialmente parecia uma promessa benéfica e amplamente desejada — a possibilidade de compensação de tributos ao longo da cadeia produtiva, uma reivindicação constante em prol da não-cumulatividade — pode se revelar um dos obstáculos mais severos para EPPs, MEIs e nanoempreendedores. Explicarei, a seguir, o conceito de não-cumulatividade e suas consequências indesejadas.
1. Da Não-Cumulatividade
Um dos principais avanços apontados na Reforma Tributária é a adoção do regime de não-cumulatividade, regulamentado pela Lei Complementar n.º 214/2025:
Art. 47. O contribuinte sujeito ao regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS quando ocorrer a extinção, por qualquer das modalidades previstas no art. 27, dos débitos relativos às operações em que figure como adquirente, excetuadas exclusivamente aquelas de uso ou consumo pessoal, conforme o art. 57, e outras hipóteses previstas nesta Lei Complementar.
Ocorre que a reforma transferiu ao contribuinte a responsabilidade de fiscalização que compete a administração tributária. A apropriação de créditos fica condicionada ao efetivo recolhimento dos tributos pelo fornecedor anterior. Na prática, o adquirente deve “investigar” se seu parceiro comercial está adimplente com o fisco.
A apropriação de créditos está submetida a duas exigências: I – deve ocorrer de forma segregada para o IBS e para a CBS, sendo vedada qualquer compensação cruzada; II – exige-se a comprovação da operação mediante documento fiscal eletrônico válido.
Os créditos presumidos são restritos a situações específicas, como no caso da Zona Franca de Manaus e para coletores incentivados (denominação mais digna aos chamados catadores de recicláveis).
Apenas contribuintes do regime regular e que não optem pelo Simples Nacional padrão, ou seja, pelo lançamento “por dentro”, podem transferir ou se apropriar de créditos. Caso um elo da cadeia não seja declarante de IBS/CBS, todo o esforço fiscal dos antecessores será inútil. Tal cenário prejudica especialmente os empresários enquadrados como EPP.
Para aproveitar os créditos, o adquirente precisará preencher obrigações acessórias complexas, o que implica maior custo de conformidade, demandando serviços contábeis especializados e sistemas automatizados igualmente caros.
O sucesso do Simples Nacional decorre da simplificação tributária e da sistemática baseada no lucro presumido — modelo que se tornará inviável na reforma, seja por não gerar, seja por não permitir o aproveitamento de créditos. Assim, para que haja uma cadeia de creditamento eficiente, todos os participantes deverão estar enquadrados no regime regular do IBS/CBS.
Embora possa surgir um Simples Nacional reformulado, com a opção de recolhimento do IBS/CBS, é provável que os integrantes da cadeia produtiva exijam essa opção dos seus fornecedores.
Os entes públicos, inclusive, serão adquirentes que obrigatoriamente exigirão o regime regular, conforme o art. 473 da LC n.º 214/2025. Dessa forma, EPPs e MEIs terão sua participação em licitações e contratos públicos severamente limitada.
2. Os Não Contribuintes de IBS/CBS
O art. 26 da LC n.º 214/2025 elenca situações em que não há incidência de IBS/CBS. Dentre elas, destacam-se os transportadores autônomos de cargas e os produtores rurais — caminhoneiros e agricultores, que, embora adquiram bens com tributação, não repassam créditos por não declararem suas operações. Esses profissionais adquirem insumos, peças e combustíveis, mas não geram ou aproveitam créditos, o que desestimula sua contratação por empresas inseridas em cadeias produtivas tributadas.
Produtores rurais com faturamento anual de até R$ 3,6 milhões também não são contribuintes regulares, e seus produtos in natura frequentemente integram a cesta básica, sem incidência de tributos. Ainda assim, precisam adquirir insumos tributados para sua atividade.
Nesse grupo de não contribuintes estão também os nanoempreendedores — aqueles com receita inferior à metade do limite do MEI no ano fiscal. Trabalhadores de aplicativos podem ser enquadrados nesta categoria.
Tanto microempresários quanto os optantes do Simples Nacional fora do regime regular não gerarão créditos, ainda que recolham IBS/CBS em proporção menor, conforme os Anexos I a VII da LC n.º 214/2025.
A consequência é previsível: empresas preferirão não adquirir bens ou serviços desses grupos. Os transportadores autônomos, pequenos agricultores e microempreendedores serão gradualmente excluídos das cadeias produtivas. O Simples Nacional “fechado” tenderá a subsistir apenas nas operações com consumidores finais.
Isso é extremamente preocupante, considerando que os pequenos negócios representam 27% do PIB, 52% dos empregos formais, 40% da massa salarial e englobam cerca de 8,9 milhões de empreendimentos.
Não há impedimento técnico para a criação de créditos presumidos para essas categorias, o que poderia mitigar os prejuízos. O mesmo raciocínio se aplica aos não contribuintes mencionados no art. 26.
3. A Pejotização como Estratégia
A reforma incentiva a pejotização dos trabalhadores, com recolhimento de IBS/CBS nas prestações de serviço, de modo que os contratantes possam se apropriar dos créditos.
Esse estímulo à formalização das relações de trabalho por meio da constituição de pessoa jurídica reforça o processo de terceirização irrestrita, respaldado pela jurisprudência do STF e potencializado pela reforma, que transfere o ônus tributário ao consumidor final.
Em um contexto de planejamento tributário agressivo, empregadores tenderão a transformar vínculos empregatícios em contratos de prestação de serviço. A LC n.º 214/2025 se revela, assim, um instrumento que enfraquece a proteção social dos trabalhadores.
Não há qualquer incentivo para que o empregador opte pela contratação formal, arcando com encargos sociais sem qualquer compensação tributária, quando pode obter vantagens econômicas contratando via pessoa jurídica.
4. Operações Imunes, Isentas e com Diferimento
Nas hipóteses de imunidade, isenção, suspensão ou diferimento, não será permitida a apropriação de créditos pelos adquirentes. Além disso, os créditos acumulados serão anulados proporcionalmente ao volume das operações isentas em relação ao total das operações do fornecedor.
Exceção se faz para os casos de alíquota zero (art. 52), onde os créditos são mantidos.
Os créditos apropriados em cada período poderão ser utilizados, sucessivamente, para: I – compensação com débitos vencidos e não extintos; II – compensação com débitos do mesmo período de apuração; III – compensação com débitos de períodos futuros, sempre na ordem cronológica. Tais créditos serão ressarcidos pelo valor nominal. Ao contrário do que ocorre com o Fisco, que cobra juros e mora, os contribuintes não têm qualquer compensação monetária automática.
O STF ainda debate, nos temas 810 e 1349, qual índice deve ser aplicado para atualização monetária (SELIC, IPCA-E ou TR), mas é certo que a devolução nominal viola o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.
5. Inconstitucionalidade Material
A EC n.°132/2023 deu nova redação ao:
art. 146, III, d: definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso dos impostos previstos nos arts. 155, II, e 156-A, das contribuições sociais previstas no art. 195, I e V, e § 12 e da contribuição a que se refere o art. 239.
Realmente, houve um tratamento “diferenciado”, mas não condizente com os objetivos perseguidos pela Constituição. Ao contrário, LC n.° 214/2025 terá efeitos deletérios para os pequenos negócios. Ao fingir que os protege, coloca-os numa encruzilhada: como vender/fornecer sem gerar créditos tributários nem qualquer vantagem para os adquirentes, pois não são contemplados nas suas operações o princípio da não-cumulatividade?
Ainda ao visualizarmos a concretude da sistemática da arrecadação vemos como serão esses negócios prejudicados. Penso que não cumpriu o legislador infraconstitucional o real incentivo e favorecimento aos pequenos negócios em confonto direto ao art. 179 da CF:
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Para mim, essa situação é a verdadeira e radical inconstitucionalidade da Reforma Tributária. A reforma vai prejudicar os pequenos negócios, pois nenhum deles usa ou gera créditos. Suas operação serão sempre mais onerosas e o estímulo para adquirir produtos e serviços desses fornecedores será inexistente. Porém, as razões para não comprar ou não inclui-los na cadeia de fornecedores, são variadas e contundentes.
Conclusões
• A Reforma Tributária não promove a formalização dos pequenos negócios, ao restringir sua inserção nas cadeias produtivas pela ausência de geração de créditos.
• Há desestímulo severo à contratação de MEIs, EPPs, produtores rurais e nanoempreendedores, comprometendo sua sustentabilidade econômica.
• A pejotização tende a ser intensificada como forma de planejamento tributário, gerando maior precarização das relações de trabalho.
• A não-cumulatividade, embora positiva em tese, se torna uma barreira de acesso para pequenos contribuintes que não optarem pelo regime regular.
• A impossibilidade de compensação de créditos em operações isentas ou imunes gera distorções e onera os fornecedores.
• A sistemática de devolução nominal dos créditos viola princípios constitucionais como a isonomia e o não enriquecimento sem causa.
• A LC n.º 214/2025, sob o pretexto de simplificação, institui um modelo regressivo e excludente, incompatível com o art. 179 da Constituição Federal.
Referências
• BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
• BRASIL. Emenda Constitucional n.º 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm.
• BRASIL. Lei Complementar n.º 214, de 11 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp214.htm.
• SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 810 – Repercussão Geral. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia.
• SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 1349 – Repercussão Geral. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia.
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