A aplicação da Inteligência Artificial (IA) na publicidade tem redesenhado as fronteiras da criação, da performance e da responsabilidade civil no ecossistema de mídia e comunicação. Estímulos visuais hiper-realistas, vozes clonadas com fidelidade impressionante e anúncios altamente personalizados são exemplos de um cenário em que ferramentas generativas operam com alto grau de autonomia e impacto.
O fascínio tecnológico, contudo, caminha lado a lado com a necessidade de regulação. A ausência de um marco legal específico no Brasil não significa um vácuo jurídico próprio das terras tupiniquins: o mundo inteiro ainda enfrenta desafios legais e éticos frente aos avanços dos últimos anos. Enquanto não há legislação específica, a interseção entre IA e publicidade exige interpretação sistemática de normas já consolidadas, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Marco Civil da Internet, o Código Civil, a Lei de Direitos Autorais, e os princípios éticos do
CONAR.
Entre os pontos mais sensíveis está a manipulação de imagem, nome e voz por meio da IA, especialmente com uso de deepfakes. O termo deriva de deep learning (aprendizado profundo) e fake (falso), e designa tecnologias capazes de criar vídeos, áudios ou imagens hiper-realistas que simulam, com impressionante fidelidade, pessoas reais, vivas ou falecidas, em situações que jamais ocorreram. Ou seja, é possível gerar um vídeo da sua imagem dizendo algo que você nunca disse, com a sua voz e expressões faciais, de forma quase indistinguível de um conteúdo genuíno.
A utilização de deepfakes sem autorização pode configurar violação aos direitos da personalidade, com base no art. 5º, X, da Constituição Federal, além dos arts. 11 a 21 do Código Civil. No Brasil, um caso de grande repercussão foi o da Volkswagen, que, em 2023, utilizou IA para simular um dueto entre a cantora Elis Regina, já falecida, e sua filha Maria Rita. A campanha gerou intensos debates sobre a legitimidade do uso da imagem de uma pessoa falecida em publicidade, inclusive à luz dos valores que a artista defendia em vida. Apesar disso, o CONAR arquivou a representação, entendendo que o uso da tecnologia era perceptível ao consumidor médio e autorizado pelos herdeiros. O caso evidenciou a necessidade de diretrizes claras para que a publicidade baseada em IA não ultrapasse os limites éticos e jurídicos.
Sob a ótica consumerista, o uso da IA na publicidade deve respeitar os princípios da informação, transparência e não enganosidade, previstos no CDC. O conteúdo publicitário não pode induzir o consumidor a erro sobre a natureza da mensagem, devendo indicar, de forma clara, quando houver simulação ou produção automatizada.
Na mesma esteira, a LGPD impõe, ainda, obrigações relevantes: o tratamento de dados para personalização de campanhas publicitárias exige observância aos princípios da finalidade, necessidade, adequação e segurança. A anonimização dos dados, o consentimento do titular e o controle de acesso são medidas fundamentais para mitigar riscos e evitar sanções administrativas e civis.
No plano internacional, o AI Act, aprovado pelo Parlamento Europeu, estabelece classificação de risco para sistemas de IA e impõe obrigações conforme sua criticidade. Campanhas que envolvam manipulação de comportamento ou coleta massiva de dados podem ser enquadradas como de “alto risco”, exigindo testes de impacto e monitoramento contínuo. O Brasil segue nessa direção.
Enquanto o marco regulatório brasileiro está em construção, recomenda-se ao setor criativo a adoção de diretrizes voluntárias. A Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) publicou, em 2024, boas práticas para o uso responsável da IA na publicidade, incluindo:
Revisão humana obrigatória dos conteúdos gerados por IA;
Capacitação técnica e ética das equipes envolvidas;
Políticas internas para mitigar riscos de viés e uso indevido de dados;
Consentimento específico e expresso para uso de imagem e voz (inclusive de herdeiros, quando aplicável);
Indicação clara da presença de IA nas peças publicitárias.
Mais do que mitigar riscos, essas medidas reforçam a confiança do público e alinham inovação à responsabilidade social. A publicidade é, antes de tudo, um instrumento de comunicação com função informativa, persuasiva e simbólica. A IA é bem-vinda, mas deve estar a serviço da verdade, da dignidade humana e da segurança jurídica.
O desafio jurídico que se apresenta é equilibrar liberdade criativa, proteção de direitos fundamentais e inovação tecnológica. A advocacia, sobretudo aquela voltada ao direito digital e à indústria criativa, tem papel essencial como articuladora de soluções contemporâneas que permitam às marcas alinharem inovação com ética e responsabilidade.
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