Anna Manuella Melo

LRCAP 2026: Uma oportunidade perdida para a transição energética Brasileira

Postado em 17 de setembro de 2025 Por Anna Manuella Melo Anna Manuella Melo Nunes é Mestre em Energias Renováveis, Presidente da Comissão de Direito de Energia da OAB/PE, Diretora Jurídica do SINDIENERGIA/PE e Gerente Jurídica da Interligação Elétrica Garanhuns, com atuação em direito regulatório e empresarial, ESG, políticas públicas, economia circular e mercado de carbono.

marco decisivo para o futuro energético brasileiro. Contudo, a minuta de portaria apresentada pelo Ministério de Minas e Energia na Consulta Pública nº 194/2025 revela uma contradição preocupante: enquanto permite a contratação de usinas a carvão mineral, uma das fontes mais poluentes da matriz energética mundial, veda categoricamente a participação de biocombustíveis, tecnologia renovável e estratégica para o país.

Esta decisão não apenas contraria os princípios técnicos que deveriam nortear um leilão de capacidade, mas também representa um retrocesso nas políticas de transição energética que o próprio governo federal vem implementando através de um robusto arcabouço legal. A exclusão dos biocombustíveis do LRCAP 2026 configura uma oportunidade perdida de dimensões históricas para consolidar o Brasil como líder global na economia de baixo carbono.

A Contradição Técnica e Ambiental

Do ponto de vista puramente técnico, a exclusão dos biocombustíveis é inexplicável. O objetivo primordial de um leilão de reserva de capacidade é contratar potência firme e flexível para garantir a estabilidade do Sistema Interligado Nacional em momentos críticos. Neste quesito, os biocombustíveis apresentam características operacionais superiores a todas as demais fontes contempladas no leilão.

Enquanto usinas a carvão mineral demandam entre 4 a 8 horas para atingir sua capacidade nominal, as termelétricas a biocombustíveis podem ser acionadas em apenas 5 a 15 minutos. Esta agilidade é fundamental para responder às variações súbitas de demanda ou à intermitência das fontes renováveis, especialmente durante as críticas rampas de carga do início da noite, quando a geração solar se reduz drasticamente.

A flexibilidade operacional dos biocombustíveis é ainda mais evidente quando comparada às restrições de unit commitment das usinas a carvão, que podem exigir até 18 horas de operação mínima contínua. Esta inflexibilidade não apenas compromete a eficiência econômica do sistema, mas também agrava o curtailment de fontes renováveis, forçando o desperdício de energia limpa para manter térmicas fósseis em operação.

O 4º Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas, publicado pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) em 2024, é categórico: nove das dez usinas mais emissoras em intensidade de carbono são movidas a carvão mineral. Em contraste, os biocombustíveis apresentam emissões 80% a 90% menores, sendo considerados neutros em carbono devido ao ciclo de absorção de CO₂ durante o crescimento da biomassa.

A Violação do Arcabouço Jurídico

Manter a vedação aos biocombustíveis no LRCAP 2026, enquanto se permite a contratação de carvão mineral, configura uma flagrante violação aos princípios constitucionais da isonomia (art. 5º, caput, da Constituição Federal) e da livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88), gerando uma profunda insegurança jurídica e regulatória que compromete a estabilidade do ambiente de negócios do setor elétrico.

Esta discriminação injustificada entre fontes energéticas carece de fundamentação técnica, econômica ou ambiental que a sustente, configurando tratamento desigual entre iguais, em clara afronta ao postulado da igualdade. Do ponto de vista do direito administrativo, a exclusão dos biocombustíveis viola os princípios da razoabilidade e proporcionalidade que devem nortear toda ação administrativa, conforme consagrado no art. 2º da Lei nº 9.784/99.

A medida mostra-se desproporcional ao permitir a participação de uma fonte reconhecidamente mais poluente enquanto veda uma fonte renovável e de baixa emissão, contrariando a lógica da menor restrição possível aos direitos dos administrados. A falta de isonomia e de alinhamento com as próprias políticas governamentais estabelecidas em lei afasta investidores e compromete gravemente a credibilidade do planejamento setorial.

Esta contradição normativa viola o princípio da segurança jurídica, pilar fundamental do Estado de Direito, e gera um ambiente de incerteza regulatória que desestimula investimentos em tecnologias limpas, contrariando frontalmente os objetivos da transição energética estabelecidos na Lei nº 15.103/2025 (PATEN). A manutenção da vedação configura ainda retrocesso ambiental, vedado pelo princípio da proibição do retrocesso em matéria ambiental, reconhecido pela doutrina e jurisprudência como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana.

Economia Circular e Desenvolvimento Regional

Sob a perspectiva da economia circular e do aproveitamento energético, a exclusão dos biocombustíveis representa um desperdício de recursos estratégicos nacionais e uma oportunidade perdida de maximizar a eficiência energética do sistema. Os biocombustíveis exemplificam os princípios da economia circular ao transformar resíduos agrícolas e subprodutos industriais em energia útil.

O biodiesel pode ser produzido a partir de óleos vegetais usados, gorduras animais e outros resíduos lipídicos, conferindo destinação nobre a materiais que, de outra forma, poderiam se tornar passivos ambientais. O aproveitamento energético desses recursos alinha-se perfeitamente com os objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), que estabelece a hierarquia de gestão priorizando a reutilização e a reciclagem.

A capacidade ociosa da indústria nacional de biocombustíveis, estimada em aproximadamente 30% para o biodiesel e 15% para o etanol, representa um ativo estratégico subutilizado que poderia ser rapidamente mobilizado para atender às necessidades do setor elétrico. Esta ociosidade decorre da falta de demanda adicional, situação que poderia ser revertida com a inclusão desses combustíveis no LRCAP 2026, gerando um círculo virtuoso de investimentos, empregos e desenvolvimento tecnológico.

O desenvolvimento socioeconômico regional constitui outro pilar fundamental que justifica a inclusão dos biocombustíveis no LRCAP 2026. A cadeia produtiva está intrinsecamente ligada ao agronegócio brasileiro, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A demanda adicional gerada pelo setor elétrico criaria um efeito multiplicador na economia rural, fortalecendo a agricultura familiar e promovendo a interiorização do desenvolvimento econômico.

O Desalinhamento com as Políticas Públicas

A exclusão dos biocombustíveis contraria frontalmente o moderno arcabouço legal que o Brasil vem construindo para fomentar a transição energética. A Lei nº 14.993/2024 (Combustível do Futuro) institui programas de incentivo ao diesel verde e ao combustível sustentável de aviação, reforçando o papel estratégico dos biocombustíveis na descarbonização. As Leis nº 14.948/2024 e 14.990/2024, que estabelecem o marco legal do hidrogênio, criam um ambiente de incentivo para toda a cadeia de energias de baixa emissão.

A Lei nº 15.103/2025 (PATEN) é ainda mais explícita ao estabelecer mecanismos de financiamento para projetos de desenvolvimento sustentável, citando expressamente a produção de biocombustíveis como etanol, biodiesel e biometano. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2034 aponta para a necessidade de diversificação da matriz e expansão das fontes renováveis para garantir a segurança do suprimento a longo prazo.

A justificativa apresentada na Nota Técnica nº 85/2025/DPOG/SNTEP, que aponta para alegados desafios de fiscalização, revela-se juridicamente frágil e tecnicamente inconsistente. A ANEEL possui um corpo técnico altamente qualificado com mais de duas décadas de experiência na fiscalização de um setor de alta complexidade tecnológica. A autarquia já demonstrou sua capacidade de adaptar-se a novas tecnologias e desafios regulatórios.

A Contribuição da OAB e Sindienergia

Diante desta grave distorção regulatória, a Comissão de Direito de Energia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Pernambuco, em conjunto com o Sindicato da Indústria de Energia no Estado de Pernambuco (Sindienergia/PE), apresentou contribuição robusta à Consulta Pública nº 194/2025, propondo alterações fundamentais na minuta de portaria.

As propostas incluem a inclusão explícita dos biocombustíveis no objeto do leilão, a remoção das vedações injustificadas nos critérios de habilitação técnica, a permissão para conversão de usinas existentes e a criação de um benefício econômico por redução de emissões na formulação dos preços de lance. Estas alterações visam corrigir as distorções identificadas e alinhar o LRCAP 2026 com os objetivos estratégicos do setor elétrico brasileiro.

Conclusão: Uma Escolha Estratégica

O LRCAP 2026 representa mais que um simples leilão de capacidade. Trata-se de uma decisão estratégica que definirá se o Brasil aproveitará plenamente seu potencial de liderança na transição energética global ou se manterá uma postura conservadora que privilegia tecnologias do passado em detrimento de soluções inovadoras e sustentáveis.

A inclusão dos biocombustíveis não é apenas uma questão de justiça regulatória ou eficiência técnica. É uma oportunidade histórica de consolidar o país como protagonista da economia verde global, aproveitando recursos estratégicos nacionais, gerando desenvolvimento regional e contribuindo decisivamente para os compromissos climáticos assumidos no Acordo de Paris.

A escolha está posta: avançar rumo a um futuro energético sustentável e competitivo ou permanecer preso a paradigmas do século passado. O Brasil tem todas as condições para liderar esta transição. Resta saber se terá a visão estratégica necessária para fazê-lo.

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