Em meio ao avanço avassalador das plataformas digitais sobre quase todos os aspectos da vida social, um dispositivo jurídico brasileiro vem ganhando protagonismo nos debates sobre liberdade, democracia e soberania: o Artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Seu julgamento de constitucionalidade, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, está longe de ser apenas uma discussão técnica. Trata-se, na verdade, de um embate simbólico e prático sobre quem controla o espaço público na era digital — se a sociedade, por meio do Estado de Direito, ou as Big Techs, com seus algoritmos, interesses comerciais e poder global.
O Artigo 19 estabelece que provedores de aplicações, como redes sociais, buscadores e plataformas, só podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos de terceiros caso descumpram uma ordem judicial específica de remoção. A lógica é clara: cabe ao Judiciário, e não às empresas privadas, decidir o que deve ou não permanecer no ar, salvo em casos excepcionais já previstos na lei.
Mas o que está realmente em jogo vai muito além da simples remoção de conteúdos. Estamos debatendo o papel das plataformas na regulação da comunicação social, na construção da opinião pública e, sobretudo, na definição dos limites da liberdade de expressão. Em outras palavras, discutimos se a sociedade ainda tem controle sobre seus próprios meios de expressão ou se ela já está submetida à vontade dos algoritmos, cujos critérios de moderação são opacos, privados e inquestionáveis.
Essa discussão dialoga diretamente com um fenômeno crescente: o que estudiosos como Yanis Varoufakis e Cédric Durand chamam de tecnofeudalismo. Vivemos, segundo eles, em um regime no qual as plataformas digitais se tornaram os novos senhores feudais. Controlam o acesso, determinam quem vê o quê, quem pode vender, quem pode falar e, principalmente, quem é ouvido. Nesse ambiente, os usuários — ou melhor, os “servos da plataforma” — perdem agência, autonomia e até mesmo a capacidade de organizar coletivamente suas próprias regras.
É nesse contexto que o Artigo 19 se revela uma trincheira essencial na defesa da soberania popular na era digital. Ao impor que apenas uma decisão judicial possa determinar a remoção de conteúdos, a legislação brasileira reafirma a primazia do Estado de Direito sobre o arbítrio privado das plataformas. Trata-se de um mecanismo de resistência contra a transformação das regras públicas em termos de serviço privados, escritos por corporações que, em muitos casos, são mais poderosas que os próprios Estados.
Se aceitarmos que empresas como Google, Meta ou X (antigo Twitter) possam decidir, por conta própria, o que pode ou não circular no espaço digital, estaremos legitimando a substituição do debate democrático por uma lógica puramente comercial, onde a gestão da atenção, da visibilidade e até da verdade é feita segundo interesses privados, muitas vezes incompatíveis com o interesse público.
Há quem argumente que essa exigência judicial torna o processo de moderação lento e ineficaz, especialmente frente aos desafios das fake news e dos discursos de ódio. Esse é, sem dúvida, um ponto relevante, mas que deve ser enfrentado com o fortalecimento do Judiciário, com varas especializadas, procedimentos ágeis e instrumentos processuais eficientes — não com a terceirização do poder jurisdicional às mãos das Big Techs.
Mais do que nunca, o debate sobre o Artigo 19 revela que não vivemos à mercê de uma evolução tecnológica inevitável. Pelo contrário, como lembram David Graeber e David Wengrow, a história da humanidade é marcada pela capacidade de criar, resistir e transformar arranjos sociais. A internet não precisa ser um território de dominação algorítmica; ela pode — e deve — ser um espaço de liberdade, pluralidade e soberania, desde que a sociedade, por meio de suas instituições, decida assim.
Em suma, defender a constitucionalidade do Artigo 19 é mais do que um posicionamento jurídico. É um ato político e civilizatório. É escolher a democracia sobre o feudalismo digital. É reafirmar que, mesmo em tempos de algoritmos, nuvens e inteligência artificial, quem faz as regras deve ser, ainda e sempre, a sociedade — e não as plataformas.
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