Entre o trabalho e o descanso, entre o tempo produtivo e o tempo vivido, há um abismo que o Estado brasileiro insiste em não enxergar. O lazer, previsto na Constituição de 1988 como direito social, tornou-se um dos direitos mais esquecidos da nossa história democrática. Ainda que conste no texto constitucional, a vida cotidiana de milhões de brasileiros demonstra o quanto esse direito foi relegado à invisibilidade, subestimado diante de uma cultura que glorifica o trabalho e desconfia do descanso.
Como diria Caetano Veloso, “o tempo é tambor de todos os ritmos, compositor de destinos”. Mas o tempo que nos foi prometido como livre; tempo de vida, de cultura, de convívio, foi capturado pelo ritmo do capital e da urgência. É o tempo que se esvai entre jornadas exaustivas, transportes precários, sobrecarga doméstica e vínculos de trabalho cada vez mais instáveis. Tempo livre virou privilégio. Lazer, uma utopia.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, inclui o lazer entre os direitos sociais, ao lado da educação, saúde, trabalho e moradia. Também aparece no artigo 217, como parte da cidadania e do dever do Estado em fomentar práticas desportivas e de lazer. Entretanto, o que vemos é a ausência de políticas públicas que deem concretude a esse direito. Como afirmam Modesto, Miguel e Assis (2020), o lazer permanece “preso à letra constitucional, sem se converter em prática social efetiva, sobretudo diante da precarização do trabalho e da mercantilização do tempo”.
O esquecimento do lazer não é neutro. Ele tem história. Edward Thompson (1998), ao analisar o capitalismo industrial, mostrou como a disciplina do tempo de trabalho apagou a noção de ócio e impôs uma ética da produtividade. No Brasil, essa lógica foi naturalizada. Fomos educados a sentir culpa por descansar, como se o repouso fosse desperdício e não parte da vida digna.
Victor Andrade de Melo e Edmundo Alves Júnior (2003) já haviam advertido que o lazer é um espaço de disputa, um campo em que se enfrentam controle social e resistência cultural. O lazer popular, o lazer de rua, o lazer comunitário sobrevive como gestos de resistência diante de um Estado que, embora o reconheça juridicamente, o abandona na prática.
E, ainda assim, o direito resiste. Resiste nas praças ocupadas, nas festas populares, nos grupos culturais que reinventam a cidade, nas periferias que criam seu próprio tempo de vida. Resiste quando o Judiciário reconhece o dano existencial de trabalhadores que perdem seu tempo livre por excesso de jornada (VIANNA, 2022). Resiste nas políticas municipais que buscam reocupar o espaço público com atividades culturais e esportivas gratuitas.
Luiz Águeda Santos (2024) argumenta que “negar o lazer é negar o próprio direito à cidadania”, pois o lazer é tempo de reconhecimento, de construção de subjetividade, de pertencimento social. É o tempo em que o sujeito se reconhece fora da lógica da produção e, portanto, se humaniza. O lazer não é apenas recreação, é expressão política da dignidade humana.
A resistência, é dupla: é do cidadão, que insiste em viver, e é do direito, que, mesmo ignorado, insiste em existir. Lembrar o lazer é também lembrar a promessa constitucional de uma vida plena, promessa que só se cumpre quando há tempo livre, espaço público e convivência.
Reivindicar o lazer é reivindicar o direito de existir para além do trabalho. É fazer valer o artigo 6º da Constituição não como poesia jurídica, mas como prática de cidadania. O lazer, esse direito esquecido, segue resistindo em cada gesto que rompe o automatismo da produtividade e devolve à vida o ritmo que o capital tentou roubar.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 2001.
GOMES, Christianne L. Lazer: necessidade humana e dimensão da cultura. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MELO, Victor Andrade de; ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Lazer e camadas populares: reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n. 1, p. 9-21, 2003.
MODESTO, Bruno; MIGUEL, Rebeca Signorelli; ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Reforma trabalhista e o (não) direito ao lazer. Licere, v. 23, n. 3, 2020.
SANTOS, Luiz Águeda. Jornada de trabalho x direito ao lazer: o tempo livre como fundamento da cidadania. Revista de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 45, 2024.
VIANNA, Fábio Empke. A violação do direito ao lazer em razão do excesso de jornada: o dano existencial e sua reparação. Revista JusLaboris, TST, 2022.
THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VELOSO, Caetano. Oração ao Tempo. In: Cinema transcendental [LP]. Rio de Janeiro: Philips Records, 1979.
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