Natali de Moura Nascimento

O direito esquecido: O lazer como direito constitucional que resiste

Postado em 08 de outubro de 2025 Por Natali de Moura Nascimento Advogada, mestranda em Direitos Humanos pela UFPE, presidente da Comissão de Igualdade Racial da Subseção Limoeiro, membra da Comissão de Defesa da Criança e do Adolescente e atuante no enfrentamento à violência de gênero com perspectiva interseccional.

Entre o trabalho e o descanso, entre o tempo produtivo e o tempo vivido, há um abismo que o Estado brasileiro insiste em não enxergar. O lazer, previsto na Constituição de 1988 como direito social, tornou-se um dos direitos mais esquecidos da nossa história democrática. Ainda que conste no texto constitucional, a vida cotidiana de milhões de brasileiros demonstra o quanto esse direito foi relegado à invisibilidade, subestimado diante de uma cultura que glorifica o trabalho e desconfia do descanso.

Como diria Caetano Veloso, “o tempo é tambor de todos os ritmos, compositor de destinos”. Mas o tempo que nos foi prometido como livre; tempo de vida, de cultura, de convívio, foi capturado pelo ritmo do capital e da urgência. É o tempo que se esvai entre jornadas exaustivas, transportes precários, sobrecarga doméstica e vínculos de trabalho cada vez mais instáveis. Tempo livre virou privilégio. Lazer, uma utopia.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, inclui o lazer entre os direitos sociais, ao lado da educação, saúde, trabalho e moradia. Também aparece no artigo 217, como parte da cidadania e do dever do Estado em fomentar práticas desportivas e de lazer. Entretanto, o que vemos é a ausência de políticas públicas que deem concretude a esse direito. Como afirmam Modesto, Miguel e Assis (2020), o lazer permanece “preso à letra constitucional, sem se converter em prática social efetiva, sobretudo diante da precarização do trabalho e da mercantilização do tempo”.

O esquecimento do lazer não é neutro. Ele tem história. Edward Thompson (1998), ao analisar o capitalismo industrial, mostrou como a disciplina do tempo de trabalho apagou a noção de ócio e impôs uma ética da produtividade. No Brasil, essa lógica foi naturalizada. Fomos educados a sentir culpa por descansar, como se o repouso fosse desperdício e não parte da vida digna.

Victor Andrade de Melo e Edmundo Alves Júnior (2003) já haviam advertido que o lazer é um espaço de disputa, um campo em que se enfrentam controle social e resistência cultural. O lazer popular, o lazer de rua, o lazer comunitário sobrevive como gestos de resistência diante de um Estado que, embora o reconheça juridicamente, o abandona na prática.

E, ainda assim, o direito resiste. Resiste nas praças ocupadas, nas festas populares, nos grupos culturais que reinventam a cidade, nas periferias que criam seu próprio tempo de vida. Resiste quando o Judiciário reconhece o dano existencial de trabalhadores que perdem seu tempo livre por excesso de jornada (VIANNA, 2022). Resiste nas políticas municipais que buscam reocupar o espaço público com atividades culturais e esportivas gratuitas.

Luiz Águeda Santos (2024) argumenta que “negar o lazer é negar o próprio direito à cidadania”, pois o lazer é tempo de reconhecimento, de construção de subjetividade, de pertencimento social. É o tempo em que o sujeito se reconhece fora da lógica da produção e, portanto, se humaniza. O lazer não é apenas recreação, é expressão política da dignidade humana.

A resistência, é dupla: é do cidadão, que insiste em viver, e é do direito, que, mesmo ignorado, insiste em existir. Lembrar o lazer é também lembrar a promessa constitucional de uma vida plena, promessa que só se cumpre quando há tempo livre, espaço público e convivência.

Reivindicar o lazer é reivindicar o direito de existir para além do trabalho. É fazer valer o artigo 6º da Constituição não como poesia jurídica, mas como prática de cidadania. O lazer, esse direito esquecido, segue resistindo em cada gesto que rompe o automatismo da produtividade e devolve à vida o ritmo que o capital tentou roubar.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 2001.

GOMES, Christianne L. Lazer: necessidade humana e dimensão da cultura. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

MELO, Victor Andrade de; ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Lazer e camadas populares: reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n. 1, p. 9-21, 2003.

MODESTO, Bruno; MIGUEL, Rebeca Signorelli; ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Reforma trabalhista e o (não) direito ao lazer. Licere, v. 23, n. 3, 2020.

SANTOS, Luiz Águeda. Jornada de trabalho x direito ao lazer: o tempo livre como fundamento da cidadania. Revista de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 45, 2024.

VIANNA, Fábio Empke. A violação do direito ao lazer em razão do excesso de jornada: o dano existencial e sua reparação. Revista JusLaboris, TST, 2022.

THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VELOSO, Caetano. Oração ao Tempo. In: Cinema transcendental [LP]. Rio de Janeiro: Philips Records, 1979.

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