Antonio Carlos Coelho Pereira Neto

O observatório da pobreza energética (OBEPE) e a relação entre o acesso à energia elétrica e a dignidade da pessoa humana: Fundamentação jurídica e perspectivas no Brasil

Postado em 06 de agosto de 2025 Por Antonio Carlos Coêlho Pereira Neto Sócio do Antonio Carlos Coêlho Pereira Sociedade Individual de Advocacia. Vice-Presidente da Comissão de Direito da Energia da OAB-PE. Pós-graduando em Transição Energética e Novos Negócios de Energia pela PUC-PR. MBA em Direito da Energia pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios - CEDIN. MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas - FGV. Pós-graduado em Processo Tributário pela UFPE. Advogado e parecerista.

Introdução

A pobreza energética no Brasil configura-se como um fenômeno multifacetado, com impactos severos na saúde, estabilidade econômica e sustentabilidade ambiental. Não se limita à ausência de conexão à rede elétrica, mas abrange acessibilidade financeira, confiabilidade e qualidade do serviço de energia. O Brasil, apesar de possuir uma matriz predominantemente renovável, com mais de 88% da eletricidade oriunda de fontes limpas, enfrenta desafios relevantes no combate à pobreza energética, evidenciando que o problema reside menos na geração e mais na distribuição equitativa e acessibilidade, bem como no alcance da chamada “última milha” até populações vulneráveis.

O enfrentamento desse cenário demanda políticas públicas que vão além do aumento da oferta de energia, exigindo investimentos em infraestrutura, mecanismos de apoio econômico às populações vulneráveis e programas inovadores que fechem a lacuna entre a riqueza energética nacional e a privação individual. Nesse contexto, o Observatório Brasileiro de Erradicação da Pobreza Energética (OBEPE), lançado em 15 de maio de 2025, representa um avanço estratégico no monitoramento do acesso a serviços energéticos no território nacional. O OBEPE estrutura-se a partir de uma multiplicidade de indicadores — padrões de consumo, renda, escolaridade, características da moradia, dados climáticos e índices de desenvolvimento humano —, consolidando diferentes bases públicas em uma plataforma interativa e unificada. Tal abordagem viabiliza análises integradas entre regiões, estados e grupos sociais, promovendo políticas baseadas em evidências para erradicação da pobreza energética no país.

A integração de dados multidimensionais, adotada pelo OBEPE, representa não só um salto metodológico, mas também político: ao associar variáveis de consumo, dados socioeconômicos e indicadores ambientais, o Observatório supera a definição restrita da pobreza energética como mera “falta de conexão”, permitindo uma compreensão mais precisa e sistêmica dessa realidade. O  acesso à energia elétrica é fundamental para a dignidade da pessoa humana, mostrando que o acesso universal e igualitário à energia se configura não apenas como serviço público, mas direito essencial para a realização de diversos direitos sociais, conforme reconhecido nos tratados internacionais de direitos humanos e na Constituição Federal.

O Observatório da Pobreza Energética (OBEPE): Missão e Atuação

O OBEPE foi criado em 15 de maio de 2025, resultado da colaboração entre o Ministério de Minas e Energia (MME), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e MRC Consultoria. Sua missão é monitorar o acesso aos serviços energéticos em todo o Brasil, permitindo ajustes dinâmicos nas políticas públicas através de um acompanhamento contínuo. O Observatório incorpora indicadores de consumo de energia, renda, escolaridade, composição familiar, além de fatores geográficos e ambientais, capturando a complexidade da pobreza energética. Um de seus objetivos centrais é consolidar bases de dados públicas em uma plataforma unificada, permitindo análises comparativas entre diferentes realidades regionais e sociais.

Posicionando-se como instrumento estratégico na formulação de políticas públicas, o OBEPE fornece informações qualificadas para caracterização precisa da pobreza energética, cumprindo papel essencial na Política Nacional de Transição Energética (PNTE). Ao alinhar-se à PNTE, o Observatório reafirma o compromisso de oferecer subsídios técnicos ao MME na formulação de políticas que assegurem acesso justo, seguro e sustentável à energia. Sua criação expressa o entendimento de que a pobreza energética, longe de ser apenas uma questão assistencial, é componente crítico do desenvolvimento sustentável e da justiça energética. A integração de dados orienta a alocação de recursos de modo mais eficiente e equitativo, consolidando o Brasil como referência em justiça energética abrangente.

Pobreza Energética no Brasil: Definição, Causas e Consequências

Definição Multidimensional

A pobreza energética no Brasil manifesta-se em um espectro amplo: ausência de acesso, dependência de combustíveis poluentes, infraestrutura deficitária e baixos níveis de renda. Em regiões como o semiárido, os custos de energia chegam a consumir em média 12,13% da renda familiar de famílias de baixa renda, obrigando 22% dos brasileiros e até 28% dos habitantes dessas regiões a reduzirem a compra de alimentos básicos para pagar pela energia em casa. A pobreza energética, portanto, persiste mesmo em locais com acesso universal à rede, devido ao alto custo da energia, expondo famílias a escolhas entre alimentação e eletricidade.

Causas Principais:

  • Desigualdades Socioeconômicas: Baixa renda limita a capacidade de pagar por energia, com mais de 68% das famílias em certas regiões sobrevivendo com até um salário mínimo. Isso obriga famílias a priorizarem energia em detrimento de necessidades básicas.
  • Infraestrutura Inadequada: Áreas rurais e isoladas ainda sofrem com redes elétricas deficientes, dificultando o acesso a serviços essenciais.
  • Dependência de Fontes Tradicionais: A falta de infraestrutura força o uso continuado de lenha e carvão, prejudicando saúde e meio ambiente.
  • Condições Climáticas: Secas e outros eventos extremos afetam a geração de energia e agravam a insegurança energética.
  • Eventos Globais e Recessões Econômicas: Aumento do custo mundial de energia e recessão global reduzem o poder de compra e aumentam a pobreza energética.
  • Políticas Públicas Ineficazes: Falhas na formulação e execução de políticas perpetuam o ciclo da pobreza energética.

Essa combinação de fatores configura uma “tempestade perfeita”, exigindo esforços intersetoriais, cooperação internacional e adaptação climática como pilares para a resiliência energética.

Consequências:

  • Saúde: Uso de lenha e outros materiais para cozinhar e aquecer leva a doenças respiratórias; a falta de energia impede a refrigeração de medicamentos e alimentos, agravando problemas de saúde pública.
  • Economia: O alto custo de energia prejudica o desenvolvimento socioeconômico, limita o acesso à educação e perpetua o ciclo da pobreza.
  • Meio ambiente: Queima de lenha e carvão contribui para desmatamento e poluição.
  • Qualidade de vida: Sem energia, o acesso à água potável, saneamento, lazer e informação é restrito, aumentando a exclusão social.

O acesso à energia revela-se, assim, um multiplicador de direitos e oportunidades, cuja ausência aprofunda desigualdades e compromete a dignidade.

O Acesso à Energia Elétrica como Direito Fundamental e Social: Fundamentação Jurídica

Tratados Internacionais

Embora o “acesso à energia” não esteja explicitado autonomamente nos tratados internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC, 1966), ratificado pelo Brasil, embasa esse direito por meio de conexões implícitas com moradia adequada, saúde, trabalho e educação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José, 1969) também dão suporte normativo, ao vincularem padrões de vida digna e saúde ao acesso à energia. A jurisprudência brasileira e interpretações sistemáticas reconhecem, assim, o acesso à energia como direito habilitador, fundamental à dignidade.

Constituição da República de 1988

A Constituição de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento (Art. 1º, III), permitindo que o acesso à energia seja entendido, pela doutrina e jurisprudência, como indispensável para a concretização dos direitos sociais elencados no Artigo 6º (educação, saúde, alimentação, moradia, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância, assistência aos desamparados). O direito à energia, embora não expresso, é condição habilitadora transversal para a efetividade desses direitos, tornando-se um imperativo constitucional. Discussões legislativas recentes buscam incluir explicitamente o acesso à energia como direito social, fortalecendo seu status jurídico e a obrigação estatal de universalização.

Normas Legais e Regulamentação Setorial

O direito ao acesso à energia elétrica concretiza-se, no Brasil, por meio de normas como a Resolução Normativa ANEEL nº 1.000/2021, que garante o direito à conexão, inclusive gratuita em casos de baixa renda ou populações indígenas e quilombolas. A resolução regula os critérios e responsabilidades para conexão e manutenção do serviço, além de impor transparência e soluções digitais para simplificação do processo de acesso. A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) é outro instrumento chave, beneficiando mais de 17 milhões de domicílios com descontos tarifários de até 100% para consumo reduzido, protegendo famílias vulneráveis de reajustes e promovendo justiça social. O benefício é concedido automaticamente a partir do Cadastro Único, reduzindo barreiras burocráticas e ampliando o acesso.

Desafios e Políticas Públicas para Erradicação da Pobreza Energética

Entre os desafios, destacam-se a baixa renovabilidade no setor de transportes, os altos custos de expansão da infraestrutura para regiões remotas (especialmente na Amazônia) e a persistência de custos elevados que comprometem a acessibilidade econômica. A mera conexão física, portanto, não resolve o problema se não vier acompanhada de políticas que garantam acessibilidade e qualidade do serviço.

Diversos programas públicos buscam superar esses obstáculos:

  • Luz para Todos: Já beneficiou 17,5 milhões de pessoas, utilizando soluções renováveis em áreas de difícil acesso.
  • Energias da Amazônia: Moderniza sistemas isolados, reduzindo a dependência do diesel.
  • Gás para Todos: Amplia o acesso ao GLP, reduzindo o uso de lenha e carvão.
  • Programa de Eficiência Energética: Incentiva o uso racional de energia, reduzindo custos em segmentos vulneráveis.
  • Tarifa Social de Energia Elétrica: Subsídios automáticos protegem famílias de baixa renda.
  • Política Nacional de Transição Energética (PNTE): Promove investimentos em novas tecnologias e articula diferentes setores para ampliar o acesso e alinhar o desenvolvimento energético, ambiental e social.
  • Fórum Nacional de Transição Energética: Reúne governo, sociedade civil e setor produtivo na busca de soluções integradas.

Tais iniciativas evidenciam o compromisso em promover justiça energética, desenvolvimento humano, fortalecimento dos serviços públicos e proteção das identidades culturais. Conforme destacado por representantes do Ministério de Minas e Energia, a erradicação da pobreza energética envolve não só conexão física, mas também apoio às economias locais e engajamento comunitário.

Conclusões e Perspectivas Futuras

O acesso à energia elétrica, no Brasil, é mais que serviço público: constitui pilar da dignidade humana e condição para a efetivação de direitos sociais fundamentais. A pobreza energética, em sua complexidade, transcende a ausência de conexão, incluindo acessibilidade econômica, confiabilidade e qualidade do serviço, com efeitos severos sobre saúde, economia, meio ambiente e inclusão social.

A fundamentação jurídica do direito à energia, embora ainda em evolução, é robusta, ancorando-se em tratados internacionais e na Constituição Federal, especialmente no princípio da dignidade da pessoa humana. O OBEPE emerge como ferramenta estratégica inovadora, integrando dados multidimensionais e orientando políticas públicas baseadas em evidências.

Apesar dos avanços regulatórios e dos programas em curso, desafios persistem — especialmente em relação à universalização do acesso e à equidade na distribuição dos benefícios da transição energética. As perspectivas para superar a pobreza energética dependem da continuidade e aprimoramento das políticas, da capacidade de adaptação a choques econômicos e climáticos, e do fortalecimento do arcabouço legal e institucional.

A consolidação do OBEPE, o aperfeiçoamento da Tarifa Social e a ampliação de programas integrados são fundamentais para garantir que o acesso à energia seja efetivamente reconhecido, promovido e protegido como direito fundamental. Uma transição energética justa e sustentável exige esforços coordenados, superando o foco apenas na oferta e priorizando a inclusão e o bem-estar de toda a população brasileira.

Quer ter acesso ao OBEPE e às informações e tutoriais já desenvolvidos pela EPE? Acesse pelo link https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/obepe-observatorio-brasileiro-de-erradicacao-da-pobreza-energetica

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