Bruno Augusto Paes Barreto Brennand

O sistema de cotas identitárias no Brasil: Uma crítica à luz de Sowell, Rawls e da ética judaico cristã

Postado em 08 de outubro de 2025 Por Bruno Augusto Paes Barreto Brennand Advogado, Professor de Direito Eleitoral e Direito Constitucional e membro da Rede Brasil de Governança – RGB Brasil

1 Introdução

O debate sobre cotas raciais, de gênero e políticas voltadas a grupos LGBT+ ganhou centralidade no Brasil contemporâneo. Enquanto a filosofia de John Rawls justifica tais políticas sob o princípio da diferença, Thomas Sowell denuncia a prática recorrente de elites intelectuais — os ‘ungidos’ — de impor modelos sociais que falham ao produzir resultados concretos positivos.

2 Fundamentação Teórica

Apresenta os fundamentos de John Rawls e Thomas Sowell, contrastando a visão normativa da justiça com a crítica empírica aos efeitos perversos das políticas de engenharia social.

3 A Realidade Brasileira

Aborda a miscigenação histórica e cultural (Freyre, Darcy Ribeiro, Pena) e os dados estatísticos do IBGE, mostrando a falácia de importar categorias raciais rígidas para a realidade brasileira. Como não lembrar das aulas de História, a formação do povo brasileiro se deu através dos mamelucos, caboclos e mulatos. Até na Revolução Pernambucana o cantor Reginaldo Rossi cantava sobre o Recife: “Ela é a cidade que viu surgir três grandes heróis da nossa nação, o negrão Henrique, o Branco Negreiros o índio Felipe e o Camarão.” Ressaltando que a união das três etnias se uniram e lutaram pela independência do País, em especial, a capitania de Pernambuco.

3.1. Mestiçagem como dado estruturante

Clássicos do pensamento brasileiro ressaltam a mestiçagem como traço constitutivo da nossa formação:

  • Gilberto Freyre interpreta a experiência luso-tropical como sociabilidade de intensa mistura e plasticidade cultural (ainda que controversa), destacando a miscigenação como elemento positivo contra doutrinas racialistas do início do século XX.
  • Darcy Ribeiro fala de três matrizes étnicas (portuguesa, indígena, africana) como núcleo de um “povo novo”, híbrido, de síntese cultural própria.

A genética contemporânea reforça isso: estudos de Sérgio Danilo Pena mostram que autodeclaração de cor/raça e ancestralidade biológica não guardam correspondência linear; a população brasileira é tri-híbrida (europeia, africana, ameríndia) e surpreendentemente uniforme em escala nacional.

3.2. O dado demográfico atual (IBGE)

O Censo 2022 confirma a pluralidade étnico-racial e a distribuição por sexo:

Nota sobre “gênero”: o Censo 2022 não coletou identidade de gênero; o próprio IBGE sinalizou a impossibilidade técnica de incluir o tema naquela operação. Para orientação sexual, há estimativas da PNAD Contínua 2019 (18+): 94,8% heterossexuais; 1,2% homossexuais; 0,7% bissexuais; 0,1% outras; 1,1% não sabiam; 2,3% não responderam

4 Críticas às Políticas Identitárias

As cotas raciais e de gênero, embora justificadas em tese, falham na prática, produzindo divisões artificiais, estigmatização e ressentimento.

4.1 Onde as políticas identitárias tropeçam (à luz de Sowell)

  1. Intenção ≠ resultado

Medem-se políticas pelo efeito líquido — não pela nobreza do slogan. No Brasil miscigenado, categorias rígidas tendem a falhar como mira fina de vulnerabilidade material.

  • Mau alvo distributivo

Cotas raciais podem beneficiar estratos médios dentro do grupo protegido e excluir pobres fora dele (o alvo real de Rawls). Isso fere o princípio de diferença aplicado ao mundo concreto — a crítica de Sowell é justamente essa: engenharia social é ruim de “tiro”.

  • Ressentimento e segmentação

Ao institucionalizar identidades, o Estado incentiva a política de tribos e a disputa por fatias fixas, realimentando conflitos. No Brasil, isso colide com o padrão de fronteiras identitárias porosas evidenciado pela demografia e pela genética.

  • Anticientificidade racial

Tratamentos estatais rígidos por “raça” ignoram a evidência de que cor fenotípica e ancestralidade biológica se embaralham no Brasil. A consequência é classificação arbitrária e conflitos distributivos de baixa legitimidade.

Vozes brasileiras críticas à racialização de políticas públicas, como Demétrio Magnoli, alertam para o risco de “importar” categorias raciais e institucionalizar uma gramática de antagonismos no país.

4.2 Políticas LGBT+ e o risco da “engenharia identitária”

No plano dos direitos individuais, o ordenamento deve proteger a todos. Quando, porém, o Estado converte orientação sexual ou identidade subjetiva em critérios distributivos rígidos, reproduz-se o problema: mau alvo, incentivos à competição de status e fragmentação. E, de fato, nem o Censo 2022 dispõe de medição padronizada de gênero/identidade para orientar desenho fino de políticas universais — um indicador claro de limite informacional.

4.3 Contradições Jurídicas e o Excesso de Cotas Caso Sírio Libanês e ENAM – Exame Nacional de Admissão à Magistratura

Recentemente ganhou destaque na mídia o concurso para seleção de médicos do conceituado Hospital Sírio Libanês em São Paulo. Em seu edital constava a reserva de vagas no percentual de 55% (cinquenta e cinco por cento), para negros, pardos, deficientes, quilombolas e até pessoas declaradas trans. Aqui precisamos abrir um parêntese para explicar melhor o que é ser “quilombola”. Vejamos o que diz o edital citado, em seu anexo IV – Vagas Reservadas para o processo seletivo de 2026:

SIRIO

Os quilombos surgiram no período colonial e imperial brasileiro como espaços de resistência formados, em sua essência, por escravizados negros fugitivos. O mais famoso exemplo é o Quilombo dos Palmares, em Alagoas.

Portanto, o termo “quilombola” remete, desde sua origem, a grupos de negros que resistiram à escravidão e criaram comunidades próprias.

O Decreto nº 4.887/2003 e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) deixam claro:

  • Quilombolas são comunidades étnico-raciais cuja ancestralidade está presumida como negra, vinculada à resistência à opressão histórica.
  • A autoatribuição (a própria comunidade se reconhecer como tal) é o critério principal, mas sempre vinculada à memória da escravidão e à descendência africana.

Isso significa que a negritude não é opcional ou incidental, mas parte constitutiva da identidade quilombola.

  • Negro é um conceito amplo usado em estatísticas (IBGE: pretos e pardos) e em políticas públicas.
  • Uma pessoa negra pode viver em qualquer contexto (urbano, rural, classe média, elite, periferia), sem vínculos comunitários específicos.
  • Quilombola, por sua vez, é um subconjunto dos negros: são aqueles que mantêm a ligação cultural, histórica e territorial com os antigos quilombos.

Assim, dizer que todo quilombola é negro significa que a identidade quilombola pressupõe negritude, pois nasce da experiência afrodescendente de resistência à escravidão.


Entretanto, o contrário não é verdadeiro: nem todo negro é quilombola, pois a maioria não pertence a essas comunidades tradicionais. Estamos, portanto, diante de um claro quadro de segregação dentro de uma mesma etnia. Há privilegiados dentre os já privilegiados.

A Constituição Federal de 1988, no art. 68 do ADCT, reconhece aos remanescentes de quilombos o direito à titulação das terras por eles ocupadas tradicionalmente. O Decreto nº 4.887/2003 detalha que se trata de grupos étnico-raciais com ancestralidade negra, relacionados à resistência à opressão histórica. O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), por sua vez, define negros como o conjunto de pretos e pardos, para fins de políticas públicas.

Essas normas criam distinções jurídicas entre quilombolas (categoria comunitária e territorial) e negros (categoria racial ampla). Ocorre, porém, que ao transpor essas categorias para o regime de cotas em concursos, universidades e políticas de acesso, o Estado brasileiro incorre em uma contradição normativa e prática. Há duplicidade de benefícios, segregação institucionalizada e contradição com o universalismo constitucional (art. 5º, caput, CF). Na prática, reforçam a lógica racial como critério jurídico, criando estigmatização e novos privilégios seletivos, em clara consonância com a crítica de Thomas Sowell à ‘visão dos ungidos’.

5) Diálogo final com Rawls

Voltando aos autores que inspiraram esse ensaio:

  • Premissa rawlsiana: intervenções são justas se melhorarem a condição dos menos favorecidos.
  • Verificação sowelliana: o que as políticas identitárias entregam de fato? No Brasil, os dados demográficos e a genética sugerem que identidades rígidas são mau proxy de desvantagem; logo, a via mais rawlsiana — paradoxalmente — é universalista e focada em condições reais de vulnerabilidade (renda, território, escola básica, saúde, segurança), em vez de identidade declarada.

7) Atualidades internacionais: fratura LGB/T na Europa

  • Registro do lançamento da coalizão LGB International (set. 2025), formalizando a dissociação de organizações LGB do guarda-chuva LGBTQ+. A cobertura em veículos internacionais e britânicos mostra a fratura política e as reações de entidades pró-trans. A análise conecta o fato ao custo de políticas identitárias agregadas e ao teste de resultados exigido por Rawls (não demonstrado).

Em setembro de 2025, organizações LGB de vários países lançaram a coalizão “LGB International”, anunciando-se independentes do guarda-chuva LGBTQ+. A iniciativa, capitaneada por grupos como a LGB Alliance, foi noticiada pela imprensa internacional e europeia e provocou reação de entidades pró-trans. O fato revela, no plano comparado, a fadiga do modelo identitário agregado (LGBTQ+) e sinaliza disputa conceitual entre direitos sexuais baseados em sexo biológico e reivindicações de identidade de gênero. Do ponto de vista desta crítica (Sowell), a ruptura expõe o custo de políticas desenhadas por slogans: onde o consenso social é frágil, as coalizões se esgarçam quando confrontadas por trade-offs concretos; já Rawls exigiria demonstração empírica de que qualquer rearranjo melhora efetivamente a condição dos menos favorecidos, o que permanece não provado.

8) Caso UFPE/PRONERA (Pernambuco, 2025): reação social e controle judicial

  • Síntese do Edital nº 31/2025: 80 vagas supranumerárias para uma turma extra de Medicina no CAA/Caruaru, seleção por redação presencial e histórico escolar, com ações afirmativas; justificativa de que não afetaria o Sisu.
  • Reações públicas: debate na Alepe; CREMEPE notificou a UFPE e acionou o MPPE; manifestações de vereadores e deputados.
  • Judicialização: Justiça Federal/PE concedeu liminar suspendendo o edital, em Ação Popular do vereador Tadeu Calheiros; diferentes veículos repercutiram a decisão.
  • Contraponto: o MST argumenta que não havia exclusividade do movimento; trata-se de política voltada a populações do campo, com processo seletivo regular.

A integração desses fatos reforça a tese central do seu texto: quando o critério de acesso migra de vulnerabilidade socioeconômica para pertencimentos identitários/organizacionais, cresce o contencioso social e judicial; o teste rawlsiano de “melhorar a posição dos menos favorecidos” fica pendente de prova empírica.

A UFPE publicou o Edital nº 31/2025 para uma turma extra (80 vagas) de Medicina no CAA/Caruaru, no âmbito do PRONERA, com seleção por redação presencial e análise do histórico escolar, além de reservas afirmativas. A universidade sustentou que eram vagas supranumerárias e que não afetariam o SISU.

Houve forte reação pública: o tema entrou em debate no plenário da Alepe; o CREMEPE notificou a UFPE e acionou o MPPE; vereadores e deputados criticaram os critérios. Em 30/09 e 01/10/2025, a Justiça Federal em Pernambuco deferiu liminar em Ação Popular ajuizada pelo vereador Tadeu Calheiros, suspendendo o edital por supostas violações a princípios da isonomia e moralidade.

No contraponto, o MST e apoiadores afirmaram que não se tratava de exclusividade do movimento, mas de política voltada a populações do campo (assentados, quilombolas, educadores), com processo seletivo regular. O caso ilustra a crítica central deste artigo: ao deslocar o foco de vulnerabilidade socioeconômica para pertencimentos identitários/organizacionais, editais tendem a enfrentar contestação social e judicial — e a produzir incentivos regressivos, no sentido de Sowell. À luz de Rawls, a pergunta permanece: tais reservas melhoram objetivamente a situação dos menos favorecidos, sem violar a igualdade formal de acesso?

9) Conclusão

À luz da crítica de Sowell e do ideal de Rawls, evidencia-se que as políticas identitárias no Brasil não cumprem a promessa de justiça social. Ao contrário, fomentam tribalismo e segmentação em um povo cuja identidade se construiu pela miscigenação. O caminho alternativo é um universalismo focalizado, baseado em critérios socioeconômicos e territoriais, avaliado empiricamente por seus resultados. A ética judaico-cristã fornece um alicerce para esse universalismo, oferecendo princípios que unem dignidade, igualdade e justiça sem ceder ao sectarismo.

Referências

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933.
IBGE. Censo Demográfico 2022: Resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial. São Paulo: Contexto, 2009.

PENA, Sérgio Danilo et al. ‘Retrato Molecular do Brasil’. Ciência Hoje, v. 27, n. 159, 2000.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOWELL, Thomas. The Vision of the Anointed: Self-Congratulation as a Basis for Social Policy. New York: Basic Books, 1995.

BÍBLIA. Português. Almeida Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

• Cobertura internacional sobre a criação da coalizão “LGB International” (set. 2025).

• Debate na Alepe sobre a turma de Medicina/PRONERA (set. 2025).

• Notas e reportagens sobre a reação do CREMEPE e sociedade civil (set.–out. 2025).

• Decisão liminar da Justiça Federal/PE suspendendo o Edital 31/2025 (30/09–01/10/2025).

• Nota oficial/defesas públicas sobre o caráter supranumerário e as etapas de seleção do edital.

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