Já há algum tempo que deliberadamente ausentei-me do debate público. É fato que isso se deu pelo aumento exponencial de trabalho que desde a pré-campanha de 2024 se apresentou, mas também tem relação direta com ser alguém que vem da academia e, portanto, está comprometido com a observação objetiva dos fatos sociais e a sua análise mediante métodos, técnicas e aportes teóricos específicos, o que é algo bem fora de moda nessa era de memes e influencers como orientadores do debate.
Nada contra, a propósito, a memes e influencers, nem a quem quer que seja que use o seu direito de fala na arena digital. Apenas dei-me uma quarentena mental em relação a esse formato de discutir as ideias sociais, avaliando se vale a pena ou faz algum sentido participar desse logos regido pela imediatidade de 30 segundos e a estética das emoções, com pouco espaço para perspectiva mais complexa das relações sociais e jogos de poder que engendram a realidade, ou, pelo menos, a realidade factual objeto das Ciências Sociais.
Pois bem, provocado por alunos, colegas, amigos e, não em menor medida, pelo dever de ofício, senti-me compelido a retornar parcialmente ao debate, sem nenhuma pretensão de convencer ninguém da validade das análises e argumentos eventualmente apresentados, mas, apenas, para assim e igualmente a todos os demais oradores na tribuna digital, exercitar o direito de fala do lugar onde estou, que é a academia, notadamente de Direito e Ciência Política.
Aliás, esse é o ponto chave em que, ao meu vago juízo, talvez influenciado pela crítica clássica de Platão, ou talvez pela visão mais recente e devastadora de Byung-Chul Han, encontra-se o dilema da democracia: todos devem ter opinião sobre tudo, e isso é bom; ou, a opinião de todos sobre tudo leva a uma decisão medíocre, formada pela média extraída entre o conflito de ideias sobre o mesmo tema expressas por especialistas, curiosos e ignorantes?
É justamente nesse ponto que entra a avaliação da atuação do STF por meio de pesquisas de opinião pública. Cabe aqui ressaltar que apenas nas democracias essa ideia de opinião pública tem algum valor e é objeto de captação, divulgação e pressão.
Vamos aos números da pesquisa, de como a população avalia a Suprema Corte:
Pesquisa Datafolha | Avaliação do STF – JUL 2025
Ruim/péssimo: 36% (28% em março de 2024)
Regular: 31% (40% em março de 2024)
Ótimo/bom: 29% (29% em março de 2024)
Não sabem: 4% (3% em março de 2024)
A hipótese que se segue é clara: na democracia qualquer órgão ou instância formada por um corpo intelectual qualificado em uma área específica tende a ser mal avaliado em uma análise mais geral do conjunto da população. Em termos mais diretos, um conselho de notáveis sobre saúde pública tende a formar um juízo técnico sobre questões pertinentes ao seu objeto que colidem com ideias cristalizadas no senso comum sobre a mesma questão, provocando uma possível avaliação negativa dos seus enunciados e/ou decisões. Estenda-se isso para conselhos de notáveis em qualquer área: consumo de alimentos ultraprocessados, saúde mental nas redes sociais, educação básica, impacto de programas sociais na estratificação e mobilidade socia etc. Em qualquer campo, para se obter melhores resultados, todos devem opinar, ou temas muito técnicos devem ser deixado à cargo de profissionais de competência e conhecimento reconhecido? A vontade da maioria, quer dizer, formada pela opinião quantitativa da maioria, é sempre a melhor vontade, ou a mais adequada para a sociedade?
A ampla participação e opinião, aliás, não é um problema em sim. O “risco democrático” está no fato de que na defesa desse “direito ilimitado” de opinar sobre tudo, está inserido o direito de argumentar com base em fatos inverídicos ou irreais, amparados apenas em narrativas sustentadas por teorias conspiratórias, fake News, deepfakes, preconceitos e hermenêuticas religiosas das mais diversas matizes. Isso é positivo ou negativo, considerando o compromisso democrático clássico com a verdade e o bem comum?
Independentemente da resposta do amigo leitor, há um fato: a arena digital do debate público já vive essa realidade ao elevar a níveis jamais experimentados a proliferação de opiniões de todos sobre tudo, sem filtros, verificação ou editorial, independentemente do tema. Do programa de enriquecimento de urânio no Irã, até a o terraplanismo, passando pela validade dos critérios, teses e debates jurídicos entre Hart, Dworkin e Holmes, muitas vezes na base teórica do que se discute no STF na solução de hard cases, tudo é objeto de deliberação de todos na democracia digital.
Nesse contexto quase-anárquico do ambiente virtual, a “voz da ciência”, incluso a ciência jurídica, ou ciência do Direito, é apenas mais uma em qualquer tema, com tendencia a ser a minoritária e a menos relevante no bojo da formação da opinião pública, principalmente se considerada em voga essa nova lógica democrática do número de views, likes e compartilhamentos como determinantes da “vitória” da tese. Ou “viraliza”, ou não participa do jogo da e-política ultra conectada.
Na caverna digital, parafraseando uma famosa lição de Francis Bacon, views é poder.
Não se trata de defender que apenas a voz da ciência seja ouvida, nem mesmo de que a voz da ciência seja melhor do que outras vozes; trata-se apenas de sugerir que, talvez, por prudência, seja razoável ouvir um pouco mais a ciência em geral, e voz da ciência do Direito no caso particular.
A avaliação popular sobre o STF certamente é um exemplo desse dilema democrático relacionado ao atual modo de formação da opinião pública sobre todos os temas, inclusive os mais complexos. O caráter contramajoritário das Cortes Supremas se reafirma em tempos de dificuldade social e, sob esse recorte do objeto, a avaliação, sendo negativa, torna-se positiva.
Há, por fim, e em arremate ao objeto dessas breves linhas, um ponto comum que une Platão, Byung-Chul Han e muitos outros pensadores referência nas academias mundo a dentro: essa radicalização da participação na Ágora digital, com todos opinando sobre tudo, sem filtros, determinando as tomadas de decisões na política e, amiúde, no Direito, amplia a democracia, ou, ao contrário, a destrói?
A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.
Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.