1. Introdução
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a posterior edição da Lei Complementar nº 214/2025, o sistema tributário brasileiro ingressa em uma das mais profundas transformações desde a Constituição de 1988.
A implantação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) inaugura o modelo de IVA Dual, substituindo tributos como PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, e alterando significativamente a dinâmica de arrecadação e repartição federativa.
Nesse cenário, as micro e pequenas empresas, enquadradas no Simples Nacional, que sempre se beneficiaram de tratamento diferenciado e favorecido (art. 146, III, “d”, da Constituição Federal), passam a enfrentar novos desafios de adaptação, competitividade e compliance fiscal.
Aparentemente imune à transição, o Simples Nacional sofrerá impactos diretos e indiretos, que vão desde a alteração do conceito de Receita Bruta, passando por novas regras de crédito tributário, até mudanças nas relações comerciais e estratégicas entre optantes e não optantes.
2. Contexto Histórico e Fundamentação do Regime
Criado pela Lei Complementar nº 123/2006, o Simples Nacional consolidou oito tributos em uma única guia de recolhimento — o DAS (Documento de Arrecadação do Simples Nacional) — simplificando a vida de milhões de empreendedores.
Em quinze anos, o regime passou de 2,5 milhões para mais de 21 milhões de optantes, segundo dados do Sebrae (2023).
A simplificação, entretanto, sempre conviveu com o desafio de equilibrar arrecadação, justiça fiscal e competitividade. A Constituição Federal assegura tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas, mas impõe a necessidade de constante revisão das bases de cálculo e dos limites de enquadramento, para que o benefício não se converta em instrumento de distorção econômica.
3. A Reforma Tributária e a Redefinição do Consumo
A obra “A Nova Dogmática da Tributação de Serviços no Brasil” (FREITAS, 2025) destaca que a reforma rompe com o paradigma industrial e reposiciona o foco da tributação para o setor de serviços e consumo.
Essa virada de eixo é profunda e reflete a realidade contemporânea da economia brasileira, na qual 73% do PIB nacional provêm do setor de serviços, segundo dados de 2024.
A Emenda Constitucional nº 132/2023 reconhece essa nova estrutura econômica ao reformular o sistema de competências tributárias, instituindo um modelo tecnológico, digital e baseado na rastreabilidade do consumo, com a criação do Domicílio Tributário Eletrônico (DTE) e a integração nacional de cadastros fiscais (CIB, CNPJ e CPF).
Esse novo ambiente fiscal traz consigo uma gestão digital integrada, destinada a ampliar a transparência e a eficiência arrecadatória, mas que exige também reorganização contábil, tecnológica e gerencial das empresas, inclusive das optantes pelo Simples Nacional.
Como ressalta Freitas, “a reforma não é apenas uma reorganização de tributos, mas uma revolução na relação do Estado com a atividade produtiva”, propondo um novo pacto de responsabilidade entre arrecadação e retorno social.
A dogmática tributária, portanto, passa a enxergar o tributo como instrumento de política pública e de desenvolvimento econômico, e não apenas como mecanismo arrecadatório.
Essa perspectiva dialoga com o artigo 145, §1º, da Constituição Federal, que consagra os princípios da capacidade contributiva e da isonomia fiscal, fundamentos que devem nortear a implementação do novo sistema. Assim, o Simples Nacional, embora preservado, será chamado a integrar esse novo modelo, sem perder sua vocação constitucional de instrumento de inclusão produtiva.
4. A Reforma Tributária e o Novo Desenho Normativo
A Lei Complementar nº 214/2025 dá efetividade ao modelo de IVA Dual previsto na EC nº 132/2023, criando dois novos tributos:
O art. 41 da LC 214/2025 preserva o Simples Nacional, permitindo que as empresas optantes recolham CBS e IBS de forma integrada ao DAS, ou, se desejarem, optar pelo recolhimento “por fora”, aproveitando créditos e débitos — o chamado IVA regular.
Essa inovação abre um novo horizonte estratégico, mas também exige maior controle contábil e planejamento tributário, sobretudo das empresas que atuam em cadeias mistas de consumo.
5. Alteração do Conceito de Receita Bruta e Novas Vedações
O artigo 516 da Lei Complementar nº 214/2025 introduziu uma modificação de grande impacto ao redefinir o conceito de Receita Bruta, ampliando sua abrangência para incluir “demais receitas da atividade ou do objeto principal da empresa”.
Essa alteração, embora sutil em sua redação, tem efeitos profundos na delimitação do enquadramento no Simples Nacional, pois passa a considerar na base de cálculo receitas acessórias, financeiras e eventuais, antes tratadas como não operacionais.
Com isso, o teto de R$ 4,8 milhões — critério determinante para a permanência no regime — tende a ser atingido mais rapidamente, impactando empresas que, embora de pequeno porte, realizem movimentações paralelas à atividade principal.
Essa nova realidade impõe rigor contábil, controle de receitas e segregação precisa das atividades, sob pena de desenquadramento automático.
Todavia, o aspecto mais sensível decorre das vedações à multiplicidade de empresas e à vinculação societária cruzada. A LC 214/2025 determina que fica proibida a opção pelo Simples Nacional às pessoas jurídicas cujos sócios ou titulares exerçam funções de administrador, gestor ou controlador em outra empresa com fins lucrativos, quando a soma das receitas brutas das sociedades vinculadas ultrapassar o limite legal.
Essa medida visa coibir planejamentos tributários abusivos, prática até então recorrente na qual um mesmo núcleo empresarial constituía várias pessoas jurídicas formais — as chamadas “empresas espelho” ou “empresas cindidas” — com o único propósito de diluir a base de faturamento e permanecer em faixas menores de tributação.
Tal conduta, além de desvirtuar o espírito da Lei Complementar nº 123/2006, viola o princípio constitucional do tratamento favorecido (art. 146, III, “d”, da CF/1988), que tem caráter inclusivo e não oportunista.
A Receita Federal do Brasil passa agora a dispor de instrumentos mais amplos de fiscalização e cruzamento de dados, podendo consolidar receitas e desconsiderar personalidades jurídicas para fins tributários, sempre que verificada unidade de direção, comunhão de sócios, dependência administrativa ou confusão patrimonial.
Esses elementos, já reconhecidos pela doutrina e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), passam a ter previsão expressa na norma complementar, reforçando o combate à evasão e à simulação fiscal.
Assim, o novo conceito de Receita Bruta, aliado às restrições de vinculação societária e ao poder de consolidação das receitas, marca uma inflexão no controle das micro e pequenas empresas, reafirmando o compromisso estatal com a isonomia tributária e a moralidade concorrencial.
Mais do que uma medida punitiva, a reforma busca restabelecer a justiça fiscal, assegurando que o Simples Nacional permaneça como instrumento legítimo de incentivo à formalização e não como atalho para redução indevida de carga tributária.
6. A Transição Gradual do Simples Nacional
A LC 214/2025 estabelece um período de transição de oito anos.
Em 2026, aplicar-se-ão apenas alíquotas-teste, sem recolhimento efetivo dos novos tributos para empresas do Simples (art. 348, III, “c”).
A partir de 2027, ocorre a extinção de PIS e Cofins e a implantação da CBS, com reflexos diretos no cálculo do DAS.
Entre 2029 e 2033, o ISS será gradualmente substituído pelo IBS, com alíquotas médias estimadas em 18,76%, muito superiores às atuais (2% a 5%).
Esse salto representa um risco inflacionário expressivo para o setor de serviços, que responde por 59% do PIB nacional.
A gestão tributária, antes simplificada, passará a exigir sistemas contábeis mais robustos, parametrização e monitoramento legislativo contínuo, em razão das variações de alíquota do IBS entre Estados e Municípios.
7. Perspectivas para o Planejamento Tributário das MPEs
O novo modelo demanda planejamento tributário ativo e compliance permanente.
As empresas do Simples Nacional deverão:
8. Conclusão
A Reforma Tributária inaugura uma nova era de maturidade fiscal e responsabilidade empresarial.
O Simples Nacional, embora mantido como regime diferenciado, perderá o caráter de refúgio simplificador e se consolidará como um modelo de transição estratégica, exigindo educação tributária, inteligência contábil e acompanhamento contínuo da legislação.
O futuro das micro e pequenas empresas dependerá de sua capacidade de compreender e se adaptar aos efeitos da CBS e do IBS, reposicionando-se nas cadeias produtivas e preservando sua competitividade.
Para tanto, será indispensável o fortalecimento de políticas de capacitação técnica, inovação e governança fiscal, sob pena de a reforma, ao invés de promover justiça tributária, aprofundar desigualdades estruturais.
Referências
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FREITAS, Rosa Maria. A Nova Dogmática da Tributação de Serviços no Brasil. Recife: Editora Ponto a Ponto, 2025.
SEBRAE. Simples Nacional – 15 anos. Brasília: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2023.
SOUZA, Caroline. Setor de Serviços: optantes pelo Lucro Presumido e Simples Nacional em risco. Brasília: Portal Reforma Tributária, 2025.
IOB. Reforma Tributária impacta o Simples Nacional? São Paulo: IOB Informações Objetivas, 2025.
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