Rodrigo Bezerra

Por que, mesmo com a inteligência artificial, os operadores do Direito devem estudar a língua portuguesa?

Postado em 23 de julho de 2025 Por Rodrigo Bezerra Por Rodrigo Bezerra, com formação em Letras e Direito, é advogado e professor de língua portuguesa, especialista em Direito Contratual e advocacia empresarial, autor da Nova Gramática da Língua Portuguesa para Concursos (11ª edição – Editora Jus Podivm)

Como confiar num texto jurídico mal redigido? Ou, pior: como garantir justiça se os instrumentos para comunicá-la, como petições, sentenças, leis, estão frequentemente comprometidos por falhas de linguagem? No mundo jurídico, saber manejar bem as palavras, formar períodos e parágrafos com clareza, coerência, correção e coesão é um dever funcional e até mesmo ético. Já ensinava Pontes de Miranda que “o Direito é forma e conteúdo; mas a forma é o caminho por onde o conteúdo transita”. Esse caminho, invariavelmente, é a língua portuguesa. A despeito do avanço da inteligência artificial, que hoje oferece modelos de redação jurídica prontos e assistentes textuais sofisticados, o operador do Direito não pode renunciar ao domínio profundo da língua, sob pena de comprometer a eficácia da norma e a segurança da própria justiça.

Segundo pesquisa de Lúcia Marinho dos Santos, “o uso incorreto dos padrões cultos dificulta ou, até mesmo, impossibilita ao leitor depreender o que está sendo explanado ou requerido”. Faz alguns anos que, a pedido de um colega professor que dava aulas de Direito do Trabalho para o Exame da Ordem, apliquei um exercício de redação forense para os candidatos que lograram êxito na prova objetiva (1ª fase). Confesso que fiquei horrorizado com o que li e vi: erros grosseiros de gramática, incoerências, ambiguidades, parágrafos mal estruturados e o pior de tudo: em muitos casos, não consegui entender o que o aluno/candidato queria dizer. Esses deslizes, quando chegam ao mundo do trabalho, comprometem a efetividade da comunicação, geram retrabalho nos tribunais e mancham reputações.

Com a chegada da inteligência artificial generativa, muitos profissionais do Direito vislumbraram, com razão, uma oportunidade de expressar-se com mais clareza, correção e celeridade. De fato, ferramentas como o ChatGPT, o Gemini, o Writesonic passaram a oferecer apoio real àqueles que sempre tiveram dificuldade em redigir textos formais. No entanto, uma nova barreira surgiu: a qualidade do que se obtém da IA depende diretamente da clareza, precisão e riqueza linguística do comando: o chamado prompt. Quem não domina a estrutura da língua portuguesa dificilmente conseguirá “dialogar” com a máquina de forma eficiente. Ademais, a IA propõe, organiza e acelera, mas ainda não interpreta contextos finos, não percebe ambiguidades nem resolve incoerências complexas sem orientação humana. Tome-se, por exemplo, a frase: “Um pai tendo dinheiro não pode permitir que os filhos passem fome.” O gerúndio “tendo dinheiro” pode significar que ele possui recursos e, por isso, é culpado pela omissão — ou pode expressar uma condição futura: caso venha a ter dinheiro, não poderá mais se omitir. Ou ainda simplesmente indicar uma informação acessória de forma restritiva ou explicativa a respeito do genitor. Trata-se de uma ambiguidade sintática e semântica que, mesmo para humanos, exige acuidade interpretativa. À IA, sem a intervenção de quem domina o idioma, restará a dúvida ou, pior, uma resposta equivocada.

A inteligência artificial é, sem dúvida, uma ferramenta poderosa que já vem promovendo ganhos expressivos na produção textual jurídica. No entanto, ela ainda (nem sei se um dia conseguirá) não substitui o elemento humano, especialmente quando o que está em jogo é a clareza, a precisão e a responsabilidade argumentativa. Ao operador do Direito, cabe usá-la sim, mas com domínio da estrutura e dos conhecimentos inerentes à língua portuguesa: morfologia, sintaxe e semântica. Por incrível que parece, voltar a estudar a língua portuguesa deixou de ser um diferencial e passou a ser uma exigência profissional. Como bem advertiu Miguel Reale: “Não há Direito sem linguagem, nem linguagem jurídica sem rigor lógico e clareza de expressão.”

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