O ordenamento jurídico brasileiro é sustentado por dois marcos legais essenciais que, embora com focos distintos, precisam coexistir em harmonia: a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a Lei de Acesso à Informação (LAI). Enquanto a LGPD (Lei n. 13.709/2018) foca na proteção da privacidade, garantindo o controle do cidadão sobre seus dados pessoais, a LAI (Lei n. 12.527/2011) assegura o direito fundamental à transparência e ao acesso às informações públicas.
Este artigo explorou como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm trabalhado para harmonizar essas leis, utilizando casos e orientações recentes que reforçam o princípio da máxima publicidade com mínima invasão de privacidade.
O Desafio da Administração Pública
O ponto de tensão central reside na Administração Pública, que, por um lado, deve tratar dados pessoais com rigor e segurança (LGPD) e, por outro, tem o dever de ser transparente, divulgando informações que, muitas vezes, contêm dados pessoais de agentes públicos, beneficiários ou terceiros (LAI). O grande risco é a LGPD ser utilizada como um pretexto para negar indevidamente a transparência, um fenômeno que a CGU identificou e busca coibir.
O Alinhamento Institucional e o Acordo de Cooperação Técnica
Em um esforço formal para superar esse desafio, a ANPD e a CGU firmaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) em maio de 2023. O objetivo desse acordo é promover a convergência de interpretações, a uniformidade de normas e o intercâmbio de conhecimento entre os dois órgãos. Este ACT é a base para garantir que os critérios de divulgação de informações pessoais previstos na LAI sejam compatíveis com as exigências de proteção da LGPD. Em essência, a cooperação busca formalizar que as duas leis são complementares, e não antagônicas, no âmbito da gestão pública responsável.
Orientações da ANPD sobre Tratamento de Dados Pessoais
A ANPD, em seus Guias Orientativos para o Poder Público (com atualizações importantes desde 2022), esclareceu que o cumprimento das obrigações de transparência da LAI é considerado uma base legal válida para o tratamento de dados pessoais. Isso significa que o órgão público que divulga informações em cumprimento à LAI está amparado pelo Art. 7º, II (cumprimento de obrigação legal ou regulatória) ou pelo Art. 23 (execução de políticas públicas) da LGPD.
O Guia reforça que a divulgação de dados de agentes públicos – como remuneração, funções e dados de contato institucionais – é, via de regra, compatível com a LGPD e necessária para o controle social. A divulgação, contudo, deve seguir os princípios da LGPD, especialmente a necessidade, limitando a exposição apenas ao que é estritamente exigido para a finalidade pública da transparência.
O Enunciado CGU e o Dever de Tratamento
No âmbito da LAI, a CGU tem sido assertiva ao combater a negativa genérica de acesso. Um marco importante é o Enunciado CGU n. 12/2023, que estabelece um dever de tratamento por parte do órgão público.
O Enunciado determina que o órgão não pode usar a alegação de “informações pessoais” para negar totalmente o acesso a um documento ou processo. Pelo contrário, o órgão deve tratar a informação. Esse tratamento implica em tarjar, excluir ou omitir apenas os dados pessoais que não são essenciais para o entendimento do interesse público, liberando o restante do documento. Isso garante o máximo acesso ao conteúdo de interesse social (LAI) enquanto se resguarda a intimidade do titular (LGPD).
Divulgação de Auxílios Governamentais: O Teste de Interesse Público
Um caso prático de harmonização envolveu a divulgação dos dados de beneficiários de auxílios governamentais. A ANPD analisou a questão e reconheceu que a transparência sobre quem recebe recursos públicos (incluindo nome e valor do benefício) é condizente com a finalidade de políticas públicas e atende ao interesse público preponderante do controle social sobre a aplicação desses recursos. A divulgação se enquadra na base legal de execução de políticas públicas da LGPD. No entanto, a ANPD exige que essa divulgação seja transparente, limitada ao necessário e devidamente documentada.
Este cenário demonstra a aplicação do teste de interesse público: a utilidade da divulgação para a fiscalização cidadã supera o potencial dano à privacidade individual, justificando a exposição de dados pessoais necessários.
Anonimização: A Ferramenta de Equilíbrio
Para as situações em que a identificação do indivíduo é irrelevante para o propósito da transparência, tanto ANPD quanto CGU priorizam a anonimização. Esta técnica permite que informações agregadas (como dados estatísticos de projetos de saúde ou educação) sejam divulgadas, cumprindo o dever de transparência (LAI) sem comprometer a identidade das pessoas envolvidas (LGPD), respeitando o princípio da necessidade.
Conclusão
A LGPD e a LAI exigem que a Administração Pública adote uma abordagem sofisticada e equilibrada. O trabalho conjunto da ANPD e da CGU, por meio de acordos, guias e enunciados, consolida o entendimento de que a proteção de dados não é uma barreira intransponível à transparência, mas sim um fator de qualificação da publicidade. A conformidade exige que os gestores sempre se perguntem: “É estritamente necessário identificar o indivíduo para que o controle social seja exercido? Se não for, o dado deve ser tarjado ou anonimizado.”
Referências
BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
BRASIL. Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Lei de Acesso à Informação (LAI).
ANPD (AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS). Guia Orientativo: Tratamento de Dados Pessoais pelo Poder Público. Brasília: ANPD, 2022 (e edições atualizadas).
ANPD (AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS). Nota Técnica sobre a divulgação de dados de beneficiários de programas sociais. Brasília: ANPD, 2023.
CGU (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO). Acordo de Cooperação Técnica \text{n}^{\circ} 05/2023: ANPD e CGU. Brasília: CGU, 2023.
CGU (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO). Enunciado n. 12/2023. Brasília: CGU, 2023.
CGU (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO). Instrução Normativa n. 1/2023 (Dispõe sobre a aplicação da LGPD no âmbito do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal). Brasília: CGU, 2023.
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