Há momentos em que o Direito se apresenta não apenas como um conjunto de normas e princípios, mas como um espelho que reflete, com dolorosa nitidez, a distância entre o ideal de justiça e a prática cotidiana dos tribunais. Recentemente, vivi uma experiência que me marcou profundamente — não apenas como estudiosa e militante do Direito, mas como mulher que acredita que a Justiça deve ser, acima de tudo, o abrigo da imparcialidade.
Durante uma audiência na esfera cível, presenciei uma das mais evidentes violações àquilo que nossa Constituição Federal protege com tanta veemência: o direito de defesa. A magistrada responsável pela condução do ato processual demonstrou, desde o início, um comportamento notoriamente parcial, favorecendo abertamente a parte autora e limitando o exercício de defesa da parte ré.
A cada intervenção, o desequilíbrio processual se tornava mais evidente. A juíza conduzia a audiência sob visível irritação e descontrole emocional, chegando a levantar a voz, bater à mesa e afirmar repetidas vezes que “não estava bem” e que “estava doente”. Em meio a esse cenário de tensão, encerrou abruptamente a audiência, adiando-a por 30 dias e declarando que “a parte ré deveria aceitar o acordo proposto pela autora” — acordo este sem respaldo jurídico e sem sequer constar da petição inicial.
O episódio mais grave, porém, foi o indeferimento da oitiva das testemunhas da parte ré, um verdadeiro atentado ao contraditório e à ampla defesa. A magistrada chegou a registrar em ata que, “caso não houvesse acordo, seguiria para decisão sem escutar as testemunhas da parte ré”, demonstrando de forma inequívoca a intenção de julgar sem a completa instrução probatória.
Não se tratava de um ato isolado, mas de uma sucessão de condutas incompatíveis com o dever de imparcialidade judicial. Em determinado momento, chegou a referir-se à parte ré com ironia e desdém, chamando-a de “olho gordo nas coisas”, expressão que, vinda de uma autoridade judicial, ultrapassa qualquer limite de urbanidade ou ética funcional.
A sensação era de estar diante de uma justiça cega — não pela neutralidade que simboliza, mas pela cegueira voluntária que ignora a lei.
A Constituição e o Direito de Falar
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal assegura que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Essa disposição não é mera formalidade: é garantia de equilíbrio e legitimidade no exercício jurisdicional.
Negar voz à defesa é negar a própria essência do processo justo. O contraditório não é um ritual burocrático, mas a manifestação viva da democracia dentro do processo. Ele representa a oportunidade de fala, de escuta e de convencimento — elementos que dão legitimidade à sentença.
Quando uma juíza cerceia a produção de provas, desconsidera testemunhos e antecipa juízos de valor, o processo se desnatura. A jurisdição torna-se autocracia.
O jurista Luigi Ferrajoli ensina que “a imparcialidade é o primeiro limite imposto ao poder de julgar; sem ela, não há processo, mas apenas comando”. O que vi naquela audiência foi a ruptura desse limite.
Cerceamento de Defesa: a Violação da Alma do Processo
O artigo 7º do Código de Processo Civil garante a paridade de tratamento entre as partes, e o artigo 369 assegura o direito de provar os fatos alegados, por todos os meios legais e moralmente legítimos. Já o artigo 370 impõe ao juiz o dever de determinar as provas necessárias à instrução do processo, de forma fundamentada e equitativa.
Contudo, quando o julgador nega a oitiva de testemunhas, interrompe a audiência de forma arbitrária e declara que decidirá sem ouvir a parte contrária, há clara afronta a esses dispositivos e violação direta aos princípios do devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
O Superior Tribunal de Justiça, em reiteradas decisões, reconhece que o indeferimento imotivado de provas configura cerceamento de defesa e impõe a nulidade da sentença. Isso porque o direito de provar é a substância da ampla defesa — sem ele, o processo torna-se um ato unilateral de poder.
Como lembra Nelson Nery Júnior, “a ampla defesa é cláusula de eficácia plena; seu desrespeito nulifica o processo desde o nascimento do vício”.
Quando o Juiz se Torna Parte
O comportamento judicial é o espelho da credibilidade da Justiça. Quando a magistrada deixa transparecer irritação, parcialidade ou emocionalidade excessiva, ela abandona o papel de mediadora do conflito e se coloca no lugar de uma das partes — tornando-se, de fato, parte do litígio.
Luiz Guilherme Marinoni adverte que “a imparcialidade é o fundamento ético do processo; o juiz parcial corrompe a jurisdição porque converte o poder de julgar em poder de vencer”.
A juíza, ao impor o seu desejo de que a parte ré aceitasse um acordo, ao ponto de condicionar a retomada da audiência a essa aceitação, ultrapassou os limites da condução processual. Em vez de promover a conciliação de forma equilibrada, pressionou emocionalmente uma das partes, violando o dever de urbanidade previsto no artigo 35, inciso IV, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN).
E quando, em público, chama uma das partes de “olho gordo”, o que se manifesta é o pré-julgamento, a emoção acima da razão e o poder acima do Direito.
A Dimensão Humana do Cerceamento
O cerceamento de defesa não é uma simples falha técnica; é uma forma de violência institucional. Ele retira da parte o direito de ser ouvida, humilha o advogado e descredibiliza o Poder Judiciário.
Como ensina Guilherme de Souza Nucci, “a defesa técnica não é uma formalidade; é o único instrumento que o cidadão possui para resistir ao poder do Estado. Negá-la é negar a própria condição humana da Justiça.”
E é justamente na esfera cível — onde se discutem patrimônio, contratos, direitos de família e outras questões que tocam a vida concreta das pessoas — que o equilíbrio deveria ser mais rigoroso. A pressa em decidir, a irritação do magistrado e a recusa em ouvir as testemunhas revelam um modelo autoritário de jurisdição, distante do ideal de diálogo e equidade que o processo civil moderno busca construir.
A Oitiva das Testemunhas e a Essência da Verdade Processual
O testemunho é o instrumento que humaniza o processo. A prova oral dá voz à experiência, revela contextos, ilumina fatos que os autos, por si só, não conseguem expressar. Negar essa etapa é negar a busca pela verdade real.
O artigo 443 do CPC garante às partes o direito de arrolar testemunhas e participar ativamente da instrução probatória. E o artigo 371 impõe ao juiz o dever de apreciar as provas de forma fundamentada, sob pena de nulidade.
Quando uma juíza declara, em ata, que decidirá sem ouvir as testemunhas da parte ré caso não haja acordo, ela não apenas antecipa seu julgamento — ela fecha os ouvidos à verdade.
Como bem disse Tourinho Filho, “o processo não é instrumento de poder, mas de justiça; quem cala a prova, cala o Direito”.
Entre a Emoção e o Poder: o Dever de Temperança Judicial
Não é esperado que magistrados sejam infalíveis, mas é indispensável que sejam equilibrados. A toga exige contenção, serenidade e senso de justiça. Bater à mesa, gritar ou encerrar audiência sob descontrole emocional compromete não apenas o processo em curso, mas a confiança de toda uma sociedade no Poder Judiciário.
A ética da magistratura repousa na compostura. O artigo 35 da LOMAN e o Código de Ética da Magistratura Nacional exigem do juiz conduta digna, cortês e paciente, especialmente nas audiências. A perda do controle revela um desvio de função moral: o poder se impõe onde o diálogo deveria prevalecer.
O Direito de Defesa como Ponto Intransponível
O cerceamento de defesa é nulidade absoluta — e não apenas porque fere dispositivos legais, mas porque destrói a essência democrática do processo. Ele rompe a confiança do cidadão no Estado e transforma o direito de ação em simples formalidade desprovida de conteúdo.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou, no julgamento do HC 82.354, que “a defesa é o núcleo essencial do devido processo legal, e sua supressão contamina todo o procedimento, tornando-o inválido”.
Conclusão: Quando a Justiça Retoma a Voz
O episódio que vivi na audiência cível não é um caso isolado. É o retrato de uma patologia institucional que ainda persiste: a cultura do autoritarismo judicial.
Mas o silêncio diante dessas condutas não é opção. Denunciar, discutir e expor essas violações é exercer cidadania jurídica. É defender o próprio sentido da toga.
O cerceamento de defesa não é apenas uma falha técnica — é uma ofensa à Constituição, à advocacia e à dignidade humana. E enquanto houver quem se cale, o Direito continuará sendo sufocado pela arbitrariedade.
Que este relato sirva não como ataque, mas como reflexão. Que sirva de espelho a todos os que, investidos de poder, esquecem que julgar é um ato de responsabilidade ética, e não de dominação.
Como lembrava Ferrajoli, “o juiz é a voz da razão do Estado; quando essa voz se eleva em grito, o Estado deixa de ser de Direito e passa a ser de força.”
E é por isso que, quando a Justiça se cala, nós, operadores do Direito, precisamos falar.
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