A história do processo penal é marcada por uma constante tensão entre a figura do acusado e a do Estado. Por muito tempo, a vítima foi relegada a uma posição marginal, quase invisível, reduzida a mero instrumento probatório. Contudo, a partir da segunda metade do século XX, desenvolveu-se a vitimologia, campo autônomo do conhecimento que se dedica a estudar a vítima, suas interações com o sistema penal e os mecanismos de reparação e acolhimento. Apesar de seu potencial transformador, a vitimologia permanece, no Brasil, como uma “revolução esquecida”, pouco incorporada de maneira efetiva às práticas judiciais e institucionais.
Como afirma Figueiredo Dias (2004, p. 25), “a vítima não pode mais ser concebida apenas como objeto do crime, mas como sujeito de direitos, cujo papel na persecução penal precisa ser resgatado”. A ausência desse resgate no contexto brasileiro revela uma profunda lacuna democrática, pois a justiça penal não pode se limitar à retribuição do mal praticado, mas deve também reconhecer, ouvir e reparar a vítima.
Neste artigo de opinião, sustenta-se que a vitimologia, ao propor a centralidade da vítima no processo penal, representa um marco esquecido que precisa ser resgatado para que o sistema de justiça criminal seja mais humano, democrático e efetivo.
Historicamente, a vítima ocupava posição central nos primórdios do direito penal. Nas sociedades primitivas, a reparação do dano e a vingança privada constituíam o núcleo da resposta ao crime. Com o advento do Estado moderno, a persecução penal foi monopolizada pelo poder público, e a vítima foi gradativamente excluída.
Segundo Mendelsohn (1956), considerado o “pai da vitimologia”, a ciência penal reduziu a vítima a um papel secundário, mero informante para a condenação do acusado. O processo penal moderno, marcado pelo modelo garantista, acabou privilegiando quase exclusivamente a proteção dos direitos do réu, em detrimento do reconhecimento das vítimas.
No Brasil, essa marginalização é evidente: o Código de Processo Penal de 1941 dedica pouquíssimos dispositivos à vítima, como os artigos 63 e 64, que tratam da reparação civil. Como observa Bitencourt (2019, p. 87), “a vítima tornou-se coadjuvante de um drama que se passa entre Estado e acusado, esquecida em sua dor e nas suas necessidades de reparação”.
A vitimologia surge, no século XX, como uma disciplina que pretende resgatar a vítima para o centro do debate criminal. Nils Christie (1977), em seu famoso texto “ Conflicts as Property ”, argumenta que o conflito penal foi “roubado” da vítima pelo Estado, e que a devolução desse protagonismo é essencial para uma justiça verdadeiramente democrática.
A chamada “revolução vitimológica” propõe que a vítima deve ser reconhecida como sujeito de direitos e não apenas como fonte de provas. Essa revolução se manifesta em diferentes vertentes:
Entretanto, no Brasil, essa revolução foi apenas parcialmente acolhida. Ainda que a Constituição Federal de 1988 consagre a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e preveja assistência à vítima (art. 5º, XXXV e art. 245), na prática, a centralidade da vítima continua ausente.
O processo penal brasileiro consolidou-se sob forte influência do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, que, embora imprescindível na defesa dos direitos do acusado, acabou sendo interpretado de forma unilateral. A ênfase quase exclusiva na presunção de inocência e no devido processo legal relegou a vítima a um lugar periférico.
É evidente que não se trata de opor direitos do acusado e direitos da vítima, mas de reconhecer que o processo penal deve conciliar ambos. Como ensina Zaffaroni (2003, p. 47), “a vítima não é adversária do réu, mas tampouco pode ser invisível no cenário penal”.
No Brasil, raros são os mecanismos de acolhimento da vítima. Programas de assistência são incipientes, inexistem fundos estruturados de indenização, e a justiça restaurativa ainda engatinha. A vitimologia, portanto, permanece esquecida, restrita a discursos acadêmicos e a experiências pontuais.
Apesar do esquecimento prático, há fundamentos constitucionais robustos para a valorização da vítima. A dignidade da pessoa humana, a cidadania e os valores sociais da justiça (CF, art. 1º, II e III) impõem ao Estado o dever de garantir tratamento digno a quem sofre o impacto direto do crime.
Além disso, o art. 5º, XXXV, assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, o que inclui a reparação dos danos sofridos pelas vítimas. O art. 245 prevê que a lei disporá sobre assistência às vítimas de crime e seus dependentes — previsão que, passados mais de 30 anos, ainda não foi regulamentada de forma eficaz.
Como afirma Gomes Canotilho (2007, p. 124), “os direitos fundamentais não podem ser compreendidos apenas como garantias negativas contra o Estado, mas também como imposições positivas de proteção às pessoas”. Isso inclui a vítima, esquecida na prática penal brasileira.
Uma das mais relevantes contribuições da vitimologia é a justiça restaurativa. Diferente da justiça retributiva, que foca na punição do infrator, a restaurativa busca restaurar laços sociais, reparar danos e reintegrar vítima e acusado na comunidade.
No Brasil, a Resolução nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça regulamentou a política de justiça restaurativa no Poder Judiciário. Ainda que tímida, a iniciativa revela um caminho promissor. Segundo Zehr (2008, p. 29), “a justiça restaurativa parte da ideia de que o crime é antes de tudo uma violação de pessoas e relacionamentos, e não apenas uma violação de normas jurídicas”.
A adoção de práticas restaurativas representa um reencontro entre vitimologia e processo penal, recolocando a vítima como protagonista.
Resgatar a revolução vitimológica é, em última análise, democratizar o processo penal. Um Estado que ignora a vítima não cumpre plenamente sua função de garantidor da justiça.
A opinião aqui defendida é que o Brasil precisa implementar, de forma efetiva, políticas públicas de atenção às vítimas, tais como:
Não se trata de retroceder em garantias fundamentais dos acusados, mas de avançar no reconhecimento de que também a vítima é sujeito de direitos. Como observa Baratta (1999, p. 55), “um processo penal democrático é aquele que consegue equilibrar os direitos do acusado e as necessidades da vítima, sem sacrificar a dignidade de nenhum dos dois”.
A vitimologia representou uma verdadeira revolução no campo das ciências criminais. Ao propor a centralidade da vítima, trouxe novos horizontes para a justiça penal. Contudo, no Brasil, essa revolução permanece esquecida.
O processo penal continua centrado no embate entre Estado e acusado, relegando a vítima a papel coadjuvante. Ainda que a Constituição de 1988 e normas internacionais reconheçam a importância da proteção às vítimas, a realidade é de omissão e invisibilidade.
Resgatar a vitimologia é um imperativo ético e democrático. Significa reconhecer que o processo penal deve ser mais humano, que a justiça não se realiza plenamente sem reparar, ouvir e respeitar a vítima. É preciso construir um modelo de processo penal que não sacrifique as garantias do acusado, mas que também não ignore as necessidades de quem sofre diretamente as consequências do crime.
Em tempos de crise de legitimidade do sistema penal, a vitimologia oferece um caminho de renovação: uma justiça que acolhe, que restaura e que democratiza. O Brasil precisa resgatar essa revolução esquecida, sob pena de manter um processo penal cego à realidade social e insensível à dignidade humana.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal . 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral . 22. ed. São Paulo:Saraiva, 2019.
BRASIL. Código de Processo Penal . Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 . Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CHRISTIE, Nils. Conflicts as Property. The British Journal of Criminology , v. 17, n. 1, p. 1 –15, 1977.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral . Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal . 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da constituição . Coimbra: Almedina, 2007.
MENDELSOHN, Benjamin. La Victimologie. Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique , v. 10, p. 783–798, 1956.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal . 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça restaurativa . São Paulo: Palas Athena, 2008.
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