Ronaldo Dutra e Jose Carlos

Vitimologia: uma revolução esquecida no processo penal brasileiro

Postado em 24 de setembro de 2025 Por Ronaldo Dutra de Amorim Graduando em Direito pela FSH, estagiário no Sindicato da Polícia Federal (SINPEF-PE)Por José Carlos da Silva Filho Graduando em Direito pela FICR, escreve nas áreas de Direito Penal e Constitucional, com foco no direito da vitima e direitos fundamentais, necropolítica. Bolsista CNPq.

INTRODUÇÃO

A  história  do  processo  penal  é  marcada  por  uma  constante  tensão  entre  a  figura  do acusado  e  a  do  Estado.  Por  muito  tempo,  a  vítima  foi  relegada  a  uma  posição  marginal,  quase  invisível,  reduzida  a  mero  instrumento  probatório.  Contudo,  a  partir  da  segunda  metade  do  século  XX,  desenvolveu-se  a  vitimologia,  campo  autônomo  do  conhecimento  que  se  dedica  a  estudar  a  vítima,  suas  interações  com  o  sistema  penal  e  os  mecanismos  de  reparação  e  acolhimento.  Apesar  de  seu  potencial  transformador,  a  vitimologia  permanece,  no  Brasil,  como  uma  “revolução  esquecida”,  pouco  incorporada  de  maneira  efetiva  às  práticas  judiciais  e institucionais.

Como  afirma  Figueiredo  Dias  (2004,  p.  25),  “a  vítima  não  pode  mais  ser  concebida  apenas  como  objeto  do  crime,  mas  como  sujeito  de  direitos,  cujo  papel  na  persecução  penal  precisa  ser  resgatado”.  A  ausência  desse  resgate  no  contexto  brasileiro  revela  uma  profunda  lacuna  democrática,  pois  a  justiça  penal  não  pode  se  limitar  à  retribuição  do  mal  praticado,  mas deve também reconhecer, ouvir e reparar a vítima.

Neste  artigo  de  opinião,  sustenta-se  que  a  vitimologia,  ao  propor  a  centralidade  da  vítima  no  processo  penal,  representa  um  marco  esquecido  que  precisa  ser  resgatado  para  que  o sistema de justiça criminal seja mais humano, democrático e efetivo.

1. A trajetória histórica da vítima no processo penal

Historicamente,  a  vítima  ocupava  posição  central  nos  primórdios  do  direito  penal.  Nas  sociedades  primitivas,  a  reparação  do  dano  e  a  vingança  privada  constituíam  o  núcleo  da  resposta  ao  crime.  Com  o  advento  do  Estado  moderno,  a  persecução  penal  foi  monopolizada  pelo poder público, e a vítima foi gradativamente excluída.

Segundo  Mendelsohn  (1956),  considerado  o  “pai  da  vitimologia”,  a  ciência  penal  reduziu  a  vítima  a  um  papel  secundário,  mero  informante  para  a  condenação  do  acusado.  O  processo  penal  moderno,  marcado  pelo modelo  garantista,  acabou  privilegiando  quase  exclusivamente a proteção dos direitos do réu, em detrimento do reconhecimento das vítimas.

No  Brasil,  essa  marginalização  é  evidente:  o  Código  de  Processo  Penal  de  1941  dedica pouquíssimos  dispositivos  à  vítima,  como  os  artigos  63  e  64,  que  tratam  da  reparação  civil.  Como  observa  Bitencourt  (2019,  p.  87),  “a  vítima  tornou-se  coadjuvante  de  um  drama  que  se  passa entre Estado e acusado, esquecida em sua dor e nas suas necessidades de reparação”.

2 . A emergência da vitimologia e sua revolução

A  vitimologia  surge,  no  século  XX,  como  uma  disciplina  que  pretende  resgatar  a vítima  para  o  centro  do  debate  criminal.  Nils  Christie  (1977),  em  seu  famoso  texto  “ Conflicts  as  Property ”,  argumenta  que  o  conflito  penal  foi  “roubado”  da  vítima  pelo  Estado,  e  que  a  devolução desse protagonismo é essencial para uma justiça verdadeiramente democrática.

A  chamada  “revolução  vitimológica”  propõe  que  a  vítima  deve  ser  reconhecida  como  sujeito  de  direitos  e  não  apenas  como  fonte  de  provas.  Essa  revolução  se  manifesta  em  diferentes vertentes:

  1. Direito à informação e à participação processual; 
  2. Direito à reparação dos danos sofridos;
  3. Direito ao tratamento digno, humano e respeitoso; 
  4. Mecanismos de justiça restaurativa – que visam aproximar vítima e ofensor em  processos de reconstrução social.

Entretanto, no Brasil, essa revolução foi apenas parcialmente acolhida. Ainda que a  Constituição Federal de 1988 consagre a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e preveja  assistência à vítima (art. 5º, XXXV e art. 245), na prática, a centralidade da vítima continua  ausente.

3. O esquecimento brasileiro: garantismo sem vitimologia

O  processo  penal  brasileiro  consolidou-se  sob  forte  influência  do  garantismo  penal  de Luigi  Ferrajoli,  que,  embora  imprescindível  na  defesa  dos  direitos  do  acusado,  acabou  sendo  interpretado  de  forma  unilateral.  A  ênfase quase  exclusiva  na  presunção  de  inocência  e  no  devido processo legal relegou a vítima a um lugar periférico.

É  evidente  que  não  se  trata  de  opor  direitos  do  acusado  e  direitos  da  vítima,  mas  de  reconhecer  que  o  processo  penal  deve  conciliar  ambos.  Como  ensina  Zaffaroni  (2003,  p.  47),  “a vítima não é adversária do réu, mas tampouco pode ser invisível no cenário penal”.

No  Brasil,  raros  são  os  mecanismos  de  acolhimento  da  vítima.  Programas  de  assistência  são  incipientes,  inexistem  fundos  estruturados  de  indenização,  e  a  justiça  restaurativa  ainda  engatinha.  A  vitimologia,  portanto,  permanece  esquecida,  restrita  a  discursos acadêmicos e a experiências pontuais.

4. A centralidade da vítima na Constituição de 1988

Apesar  do  esquecimento  prático,  há  fundamentos  constitucionais  robustos  para  a  valorização  da  vítima.  A  dignidade  da  pessoa  humana,  a  cidadania  e  os  valores  sociais  da  justiça  (CF,  art.  1º,  II  e  III)  impõem  ao  Estado  o  dever  de  garantir  tratamento  digno  a  quem  sofre o impacto direto do crime.

Além  disso,  o  art.  5º,  XXXV,  assegura  que  “a  lei  não  excluirá  da  apreciação  do  Poder  Judiciário  lesão  ou  ameaça  a  direito”,  o  que  inclui  a  reparação  dos  danos  sofridos  pelas  vítimas.  O  art.  245  prevê  que  a  lei  disporá  sobre  assistência  às  vítimas  de  crime  e  seus  dependentes  —  previsão  que,  passados  mais  de  30  anos,  ainda  não  foi  regulamentada  de  forma eficaz.

Como  afirma  Gomes  Canotilho  (2007,  p.  124),  “os  direitos  fundamentais  não  podem  ser  compreendidos  apenas  como  garantias  negativas  contra  o  Estado,  mas  também  como  imposições  positivas  de  proteção  às  pessoas”.  Isso  inclui  a  vítima,  esquecida  na  prática  penal  brasileira.

5. A justiça restaurativa como ponte entre vítima e acusado

Uma  das  mais  relevantes  contribuições  da  vitimologia  é  a  justiça  restaurativa.  Diferente  da  justiça  retributiva,  que  foca  na  punição  do  infrator,  a  restaurativa  busca  restaurar  laços sociais, reparar danos e reintegrar vítima e acusado na comunidade.

No  Brasil,  a  Resolução  nº  225/2016 do  Conselho  Nacional  de  Justiça  regulamentou  a política  de  justiça  restaurativa  no  Poder  Judiciário.  Ainda  que  tímida,  a  iniciativa  revela  um  caminho  promissor.  Segundo  Zehr  (2008,  p.  29),  “a  justiça  restaurativa  parte  da  ideia  de  que  o  crime  é  antes  de  tudo  uma  violação  de  pessoas  e  relacionamentos,  e  não  apenas  uma  violação  de normas jurídicas”.

A  adoção  de  práticas  restaurativas  representa  um  reencontro  entre  vitimologia  e  processo penal, recolocando a vítima como protagonista.

6. Um processo penal mais democrático e humano

 Resgatar  a  revolução  vitimológica  é,  em  última  análise,  democratizar  o  processo  penal.  Um  Estado  que  ignora  a  vítima  não  cumpre  plenamente  sua  função  de  garantidor  da  justiça.

 A  opinião  aqui  defendida  é  que  o  Brasil  precisa  implementar,  de  forma  efetiva,  políticas públicas de atenção às vítimas, tais como:

  1. Criação de fundos de reparação;
  2. Programas de apoio psicológico, jurídico e social; 
  3. Maior participação da vítima nas fases processuais; 
  4. Expansão da justiça restaurativa.

Não  se  trata  de  retroceder  em  garantias  fundamentais  dos  acusados,  mas  de  avançar  no reconhecimento  de  que  também  a  vítima  é  sujeito  de  direitos.  Como  observa  Baratta  (1999,  p.  55),  “um  processo  penal  democrático  é  aquele  que  consegue  equilibrar  os  direitos  do  acusado  e as necessidades da vítima, sem sacrificar a dignidade de nenhum dos dois”.

CONCLUSÃO

A  vitimologia  representou  uma  verdadeira  revolução  no  campo  das  ciências  criminais.  Ao  propor  a  centralidade  da  vítima,  trouxe  novos  horizontes  para  a  justiça  penal.  Contudo,  no  Brasil, essa revolução permanece esquecida.

O  processo  penal  continua  centrado  no  embate  entre  Estado  e  acusado,  relegando  a  vítima  a  papel  coadjuvante.  Ainda  que  a  Constituição  de  1988  e  normas  internacionais  reconheçam a importância da proteção às vítimas, a realidade é de omissão e invisibilidade.

Resgatar  a  vitimologia  é  um  imperativo  ético  e  democrático.  Significa  reconhecer  que o  processo  penal  deve  ser  mais  humano,  que  a  justiça  não  se  realiza  plenamente  sem  reparar,  ouvir  e  respeitar  a  vítima.  É  preciso  construir  um  modelo  de  processo  penal  que  não  sacrifique  as  garantias  do  acusado,  mas  que  também  não  ignore  as  necessidades  de  quem  sofre diretamente as consequências do crime.

Em  tempos  de  crise  de  legitimidade  do  sistema  penal,  a  vitimologia  oferece  um  caminho  de  renovação:  uma  justiça  que  acolhe,  que  restaura  e  que  democratiza.  O  Brasil  precisa  resgatar  essa  revolução  esquecida,  sob  pena  de  manter  um  processo  penal  cego  à  realidade social e insensível à dignidade humana.

REFERÊNCIAS

BARATTA,  Alessandro.  Criminologia  crítica  e  crítica  do  direito  penal .  2.  ed.  Rio  de  Janeiro: Revan, 1999.

BITENCOURT,  Cezar  Roberto.  Tratado  de  direito  penal:  parte  geral .  22.  ed.  São  Paulo:Saraiva, 2019.

BRASIL. Código de Processo Penal  . Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL.  Constituição  da  República  Federativa  do  Brasil  de  1988 .  Brasília,  DF:  Senado  Federal, 1988.

CHRISTIE,  Nils.  Conflicts  as  Property.  The  British  Journal  of  Criminology ,  v.  17,  n.  1,  p. 1 –15, 1977.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016. DIAS, Jorge de Figueiredo.  Direito penal: parte geral . Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

FERRAJOLI,  Luigi.  Direito  e  razão:  teoria  do  garantismo  penal .  6.  ed.  São  Paulo:  Revista  dos Tribunais, 2014.

GOMES  CANOTILHO,  J.  J.  Direito  constitucional  e  teoria  da  constituição .  Coimbra:  Almedina, 2007.

MENDELSOHN,  Benjamin.  La  Victimologie.  Revue  Internationale  de  Criminologie  et  de  Police Technique , v. 10, p. 783–798, 1956.

ZAFFARONI,  Eugenio  Raúl.  Em  busca  das  penas  perdidas:  a  perda  da  legitimidade  do  sistema penal . 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

ZEHR,  Howard.  Trocando  as  lentes:  um  novo  foco  sobre  o  crime  e  a  justiça  restaurativa . São Paulo: Palas Athena, 2008.

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