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Reforma Tributária e mais uma vez, sobre serviços extrajudiciais (Cartórios)

Postado em 05 de novembro de 2025 Por Rosa Freitas Doutora em Direito e advogada. Autora de artigos e livros jurídica oa mais recentes são: `A nova dogmática da tributação de serviços no Brasil" e "A Reforma Tributária e as compras governamentais

Os cartórios, nome popular para designar os serviços extrajudiciais prestados por notários, tabeliães e oficiais de registro, merecem um capítulo à parte na Reforma Tributária do Consumo (LC n.º 214/2025) e no PLP n.º 108/2024, que está em fase final de votação.

Mas vou tratar apenas das questões relativas à tributação do consumo.

As serventias extrajudiciais pagam atualmente ISS aos Municípios, conforme previsão constante na LC n.º 116/2003. Mesmo após questionamentos no STF, ficou assentada a constitucionalidade da cobrança. No STJ, firmou-se o entendimento de que a base de cálculo seria a totalidade do custo dos serviços, pois, além dos emolumentos, há outras verbas que incidem sobre a cobrança.

Muitas perguntas surgiram a partir daí. A primeira é: o acréscimo dos custos seria devido pelo tabelião, notário ou oficial, ou pelo contribuinte adquirente? Temos ambas as soluções Brasil afora, a depender do entendimento das leis municipais que regulam o ISS e dos Tribunais de Justiça.

Em alguns lugares, a incidência se dá sobre a totalidade, sendo acrescentada à cobrança; em outros, não há o repasse.

Outro ponto importante é que a cobrança é cumulativa. Não existe não-cumulatividade no ISS — e isso é fundamental para compreendermos o tamanho do desafio na transição de um sistema para outro. Superada a discussão, já não há mais qualquer tipo de controvérsia sobre o assunto: os Municípios podem cobrar o ISS sobre o preço dos serviços recebidos pelos registradores e tabeliães, não se aplicando, portanto, o conhecido “ISS fixo”.

Esse entendimento já havia sido consolidado pela 2ª Turma do STJ em 1º/06/2010, no REsp n.º 1.187.464, de relatoria do Ministro Herman Benjamin.

Mas como ficará a situação na Reforma Tributária?

Outro detalhe relevante é que os delegatários, interinos e interventores são tributados na pessoa física. Os cartórios não são pessoas jurídicas, e os serviços são lançados no próprio CPF dos titulares. Não é o objeto deste artigo, mas cabe lembrar que todos pagam IRPF.

Esclarecemos que não há hoje o pagamento de PIS/COFINS. Entretanto, haverá a incidência da CBS, não apenas para os delegatários, mas também para nós, profissionais liberais.

A partir de 2027, todos que hoje pagam ISS pagarão também a CBS; e, a partir de 2029, o IBS e o ISS simultaneamente, até o final do período de transição.

Diante de tamanha complexidade e imbróglio, a insegurança jurídica reina.

Sobre os serviços extrajudiciais prestados por esses profissionais, tratarei em três textos, abordando o desdobramento de três princípios: neutralidade, tributação no destino e não-cumulatividade.

1. Princípio da neutralidade

O princípio da neutralidade prevê que todos no país pagarão a mesma carga tributária por serviços, bens e direitos iguais ou semelhantes. Nesses termos, todos os Municípios e Estados recolherão a CBS e o IBS com base em alíquotas semelhantes, limitadas pela alíquota padrão.

Um exemplo que ouvi foi de uma colega que reside em Petrolina e, quando precisa realizar atos notariais que podem ser praticados em Juazeiro, opta por fazê-los lá. Na cidade vizinha, os serviços são sempre mais baratos e podem representar uma economia de até 75%.

Outro ponto é que, na Bahia, assim como em Pernambuco, muitos Municípios não possuem previsão em suas leis locais para a tributação dos serventuários.

A Bahia pode até hoje ter emolumentos mais baratos, mas, com a Reforma Tributária e a adoção da alíquota de referência, haverá um teto comum e uma aproximação das alíquotas incidentes sobre os serviços.

2. Como se resolve a questão das alíquotas municipais?

Atualmente, só há cobrança se existir norma municipal com previsão expressa na lista de serviços. Com a Reforma, essa lista deixará de existir. Todos os serviços recolherão IBS/CBS, não dependendo mais de lei local.

Outro ponto é que, se o Município não legislar sobre a alíquota local, prevalecerá a alíquota de referência federal. Essa alíquota ainda não foi disciplinada, pois será debatida e calculada pelo Tribunal de Contas da União, que auxiliará o Senado Federal nessa definição.

Isso significa que a inércia de alguns Municípios será suprida, e o tributo poderá ser cobrado, mesmo que até hoje não tenha havido tal cobrança.

A alíquota do IBS/CBS em 2033 pode ser de 28% e até maior. Significa que a aliquota incidente subirá de até 5% para margem superior a 25%.

3. Mas o Brasil todo e todas as serventias serão assim?

Um outro problema gravíssimo é que teremos uma alíquota única para todos os serviços, sejam eles de cidadania — como registros de nascimento e óbito —, sejam aqueles mais financeiramente atrativos, como registros de imóveis e protestos.

Além da diversidade econômica entre os diversos tipos de serventias, também existem diferenças regionais gritantes. Há Municípios pequenos cujas serventias apenas funcionam graças à complementação de recursos transferidos e subsidiados pelo FERC (Fundo Especial para o Registro Civil) ou por outros fundos públicos.

As serventias extrajudiciais são diversas, discrepantes e absolutamente incomparáveis em termos de recursos disponíveis, capacidade de absorver novos custos e de estrutura técnica e de suporte — inclusive, e assustadoramente, quanto à disponibilidade de internet.

Esse Brasil real é ignorado pelo Brasil ideal, forjado e existente apenas no imaginário dos mentores da Reforma Tributária.

Conclusão

Concluímos que: 

• Despreparo das serventias para a Reforma Tributária:

Na iminência do período de testes, que se inicia em janeiro de 2026, muitas serventias — inclusive as mais estruturadas — não estão preparadas para a implementação do novo modelo tributário, o que pode gerar desorganização e insegurança operacional.

• Risco de paralisação dos serviços essenciais:

A aplicação imediata das novas regras, somada à complexidade do sistema e à falta de suporte técnico, pode levar à paralisação temporária de serviços extrajudiciais, comprometendo engrenagens essenciais da economia, da vida social e da cidadania.

• Desigualdade entre serventias e regiões:

A Reforma Tributária ignora as profundas disparidades regionais e estruturais entre as serventias, tratando de forma igual realidades profundamente desiguais — o que agrava a vulnerabilidade das unidades de menor porte ou situadas em municípios dependentes de subsídios.

• Conflito entre simplificação e viabilidade:

Embora prometa simplificação e neutralidade, o novo sistema pode gerar mais insegurança jurídica e custos administrativos, afastando-se do objetivo de tornar o modelo tributário mais racional e eficiente.

• Desafio de equilibrar justiça fiscal e continuidade dos serviços:

O grande desafio é conciliar a busca por justiça fiscal — com neutralidade, tributação no destino e não-cumulatividade — com a manutenção da viabilidade prática e financeira dos serviços notariais e registrais, que são pilares da cidadania e da segurança jurídica no país.

Os desafios para esses profissionais são imensos, e a possibilidade de aplicação de multas só não é mais dramática do que o risco concreto de paralisação dos serviços extrajudiciais. Com eles, podem parar engrenagens essenciais da economia, da vida social e da cidadania.

A Reforma Tributária, ao aplicar indistintamente os princípios da neutralidade, da tributação no destino e da não-cumulatividade, desconsidera as profundas desigualdades regionais e estruturais entre as serventias.

O novo modelo, embora prometa simplificação, pode gerar mais insegurança e comprometer a continuidade de serviços essenciais à vida civil. O desafio, portanto, é conciliar justiça fiscal e viabilidade prática — o que, até o momento, parece longe de se concretizar.

Referências

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1973.

BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regula o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre os serviços notariais e de registro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994.

BRASIL. Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º ago. 2003.

BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de julho de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jul. 2025.

BRASIL. Proposta de Lei Complementar nº 108, de 2024. Dispõe sobre normas gerais da CBS e do IBS e altera dispositivos tributários. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2024.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o sistema tributário nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 2023.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.089-2/DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 13 out. 2005.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Recurso Especial nº 1.187.464/RS. Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 1º jun. 2010.

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