O Código Penal brasileiro, no artigo 121, parágrafo 2º, inciso IV, estabelece como qualificadora do crime de homicídio o fato de o agente utilizar “recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Isso, à primeira vista, pode parecer um comando simples e objetivo estabelecido pelo legislador: quem mata alguém de surpresa, sem chance de reação, torna seu ato mais reprovável. Entretanto, na prática forense, vêm se tornando frequente e crescente o uso quase que automático do referido dispositivo pelo Ministério Público em suas ações, bem como seu pleno acolhimento pelos juízes no recebimento da denúncia e nas sentenças de pronúncia.
Essa perigosa tendência suscita uma reflexão extremamente importante: o Direito Penal, como ramo que lida com a tutela dos bens mais valiosos para a convivência harmônica em sociedade, não pode ser regido por faltas de discricionariedade. Cada termo da lei penal carrega um peso valorativo, remontando à uma escolha política e ética. Assim, banalizar uma qualificadora é esvaziar o próprio sentido de justiça que ela deveria representar e proteger.
O inciso IV surgiu justamente para abranger situações de ataques sorrateiros, de emboscadas, ou situações em que a vítima está indefesa por absoluta impossibilidade de reação, como um disparo pelas costas ou um golpe fatal enquanto a vítima dorme ou está desacordada. A lógica, em princípio, é simples. Mas o problema surge quando essa mesma ideia passa a ser aplicada indistintamente, sem uma análise concreta das circunstâncias, inobservando princípios e garantias fundamentais, como o Princípio da Individualização da Pena.
É fato que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no REsp. 1.713.312/RS, já fixou que “para configurar a qualificadora referente ao recurso que dificulte a defesa da vítima, a surpresa é o fator diferencial” e que a mera superioridade de armas, por si só, não é suficiente para caracterizá-la. Em complemento a esse entendimento, faz-se necessário discutir, nesse momento, que o simples fato de a vítima ser surpreendida por alguma abordagem criminosa com uso de armas, por muitas vezes, pode e deve ser entendido simplesmente como uma consequência natural de qualquer conduta dolosa. É preciso uma análise crítica e fundamentada para que não se possa, portanto, transformar todo homicídio inesperado em homicídio qualificado.
Mais ainda, a jurisprudência também admite que, quando há discussão prévia, animosidade entre autores e vítimas ou um conflito anterior, não há de se falar em “elemento surpresa” que justifique, por si só, a presença, no caso concreto, da qualificadora presente no inciso IV, parágrafo segundo, artigo 121 do Código Penal. Nesse sentido, a título de exemplo, no AREsp 1.059.130/MG, foi-se determinado o estabelecimento da referida qualificadora, pois, no que pese o histórico de ameaças, a vítima foi atacada pelas costas sem qualquer possibilidade de reação, após ordem de se ajoelhar.
A banalização desse dispositivo legal gera profundos efeitos. Primeiro, verifica-se a ampliação indevida do alcance do tipo qualificado, violando, sobretudo, os princípios da Legalidade Estrita e da Taxatividade, que exigem precisão na norma penal. Segundo, isso compromete o papel do Tribunal do Júri, pois qualificar excessivamente um crime influi na percepção dos jurados, que, por muitas vezes, são leigos em relação ao Direito, distorcendo o juízo acerca da gravidade do fato. Foi justamente por isso que, no AREsp 813.200/DF, foi-se estabelecido que “é cabível a exclusão das qualificadoras, na decisão de pronúncia, quando manifestamente improcedentes, uma vez que cabe ao Tribunal do Júri (…) a emissão de juízo de valor acerca da conduta praticada pelo réu”.
O combate à essa banalização não deve ser entendido como uma “defesa ao criminoso”, tampouco objetiva dificultar a aplicação da lei penal. Não! Trata-se de uma defesa ao próprio direito enquanto instrumento de justiça, não de vingança. Aplicar a lei com rigor técnico é garantir que o sistema penal mantenha um mínimo de racionalidade, previsibilidade, proporcionalidade e, em última (mas não menos importante) análise, humanidade. O que se problematiza, aqui, é tão somente a sua aplicação genérica e infundada, que pode acarretar insegurança jurídica e punição excessiva.
O Direito Penal, ao lidar com o bem jurídico mais sensível, a vida, exige decisões baseadas em provas e fundamentos concretos. Nesse contexto, princípios como in dubio pro reo adquirem papel essencial: diante da incerteza quanto à efetiva presença de elementos que agravem o delito, deve-se prevalecer a dúvida em favor do acusado. Um ordenamento jurídico como o brasileiro, de bases constitucionais e fundamentos garantistas, não pode admitir interpretações capazes de gerar punições desnecessárias.
A fragilidade com que o tema é tratado no processo penal pode gerar um conjunto de veredictos condenatórios fundados apenas em um viés social típico de uma sociedade essencialmente punitivista que ainda se distancia dos preceitos garantistas consagrados em seu próprio ordenamento jurídico e que carece de compreensão acerca da complexidade que envolve uma condenação penal. O Direito Penal, em sua trajetória histórica, nem sempre avança de maneira coerente com os ideais de humanidade que deveriam norteá-lo. Em momentos de insegurança social, observa-se uma tendência de recorrer a soluções simplistas e punitivistas, impulsionadas por discursos que exploram o medo coletivo. Essa lógica contribui para a distorção do verdadeiro propósito das normas penais, favorecendo interpretações questionáveis e aplicações banais de dispositivos legais. No entanto, a prática jurídica deve se manter fiel à sua essência garantista.
Por fim, refletir sobre a banalização da qualificadora do “recurso que dificulta ou torna impossível a defesa do ofendido” no crime de homicídio é reafirmar o compromisso do Direito Penal com a técnica, a proporcionalidade e a racionalidade que devem guiar sua aplicação. A interpretação excessivamente extensiva desse inciso fragiliza não apenas o rigor dogmático da lei penal, mas também a credibilidade do sistema de justiça, que deve se pautar sempre pelo respeito às garantias fundamentais. É preciso recordar que o papel do Direito Penal não é o de satisfazer anseios punitivistas imediatos, mas o de assegurar uma resposta jurídica justa e coerente, fiel à Constituição e aos princípios que limitam o poder de punir do Estado. Preservar a precisão e a finalidade das qualificadoras é, portanto, proteger a própria legitimidade da justiça penal, pois um Estado que pune sem critérios acaba por usurpar o sentido mais profundo de justiça que diz defender.
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