São inúmeros os benefícios que esse sistema trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro. Mas será que ele está sendo bem operado? Os seus possíveis benefícios estão sendo equitativos, ensejando o acesso adequado de todas as classes sociais? A integração, interação e cooperação intrassistêmica estão sendo geridos eficazmente pelos respectivos operadores? A inteligência artificial está sendo competentemente aproveitada para agilizar soluções estratégicas, contribuindo para reduzir os custos da burocracia e para facilitar a fluidez das múltiplas atividades?
O Poder Judiciário – átrio maior do sistema -, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, as Procuradorias e a Diplomacia estão sendo eficientes? Será que o formalismo monológico da antiga pedagogia processual ainda exerce influência? É verdade que o realismo sistêmico das pedagogias ativas, dialógicas; prioritárias no âmbito do sistema Multiportas, já prevalece na conduta dos nossos processualistas? É verdade que, a despeito da crescente demanda por consenso e desjudicialização, é mais simples e vantajoso para os patrocinadores de concursos públicos e editoras incentivarem as publicações sobre a memória e compreensão de textos normativos?
Frente a essas indagações, voltei no tempo em busca de explicações. Encontrei a lição de Marcelo Neves, jusfilósofo brasileiro, em sua obra “Entre Hidra e Hercules: Princípios e Regras Constitucionais”, publicada inicialmente em 2013, Editora WMF Martins Fontes.
Segundo Marcelo Neves, a justiça diz respeito ao processamento do paradoxo de uma decisão jurídica ao mesmo tempo consistente e socialmente adequada, envolvendo o abstrato e o concreto, o geral e o individual. A justiça é sempre algo que falta, implicando a busca permanente do equilíbrio entre consistência jurídica e adequação social das decisões jurídicas. Esse paradoxo pode ser processado e solucionado nos casos concretos, mas ele nunca será superado plenamente.
O autor entende que, no âmbito do Direito, qualquer solução é parcial e que devemos substancialmente buscar soluções realistas, afastando a expansão e o imperialismo dessas lógicas sistêmicas monológicas, no sentido de evitar que a sociedade se submeta ao império do dinheiro, da técnica, da ciência, do poder, e da juridificação dogmática.
Também crítico dessa juridificação da cultura processual, o jusfilósofo José Souto Maior Borges, em sua obra “O Contraditório no Processo Judicial: uma visão dialética”. 3ª ed. rev. – São Paulo: Noeses, 2021, inspirado em Aristóteles, distingue a lógica analítica a partir de proposições verdadeiras, da lógica dialética, também ela dedutiva, mas a partir de opiniões ou premissas verdadeiras (as denominadas premissas dialéticas). Essa dialética como arte da discussão regrada era, na antiguidade clássica, o método filosófico por excelência.
Ao seu modo, Souto Borges também condena os abusos historicistas, chamados de dialéticas por pensadores da modernidade, a exemplo de Hegel e Karl Marx. Em sentido próprio, a dialética não se impõe como verdade científica. A lógica dialética é, por excelência, a lógica more jurídico (estilo jurídico), em contraposição à lógica monológica, more geométrico (estilo geométrico).
Acresce Souto que, em seu sentido originário, a dialética engloba a retórica; arte da argumentação organizada. E insiste: “O mais grave erro do cientificismo e sistematismo modernos foi abandonar a dialética, lógica do diálogo, e abraçar a lógica do monólogo; do discurso jurídico empreendido por um só: o autor da teoria, o exegeta dos textos legais, o comentarista, o glosador, o simples anotador, o atualizador, etc”.
Por sua vez, o jusfilósofo brasileiro João Maurício Adeodato, com outros fundamentos, também é crítico dessa lógica do formalismo juridificante. Em sua retórica realista, condena a ideia de que o Direito pode ser aplicado de maneira puramente técnica e neutra, como defendido por correntes formalistas. Em vez disso, enfatiza que as decisões judiciais são sempre influenciadas por fatores políticos, econômicos e culturais. Para a retórica realista, não há uma única verdade jurídica objetiva; o que se tem são diferentes interpretações e discursos concorrentes.
Afirma, ainda, que “verdade” jurídica é, em última instância, o resultado de um processo de persuasão e legitimação, dentro de um determinado contexto institucional. Percebe-se aí, pois, a dialética da sua retórica realista. A retórica realista, conforme defendida por Adeodato, contribui para uma visão mais crítica e consequente do Direito, destacando a importância do discurso e a inevitável influência de fatores extrajurídicos nas decisões.
Sob a influência desses três juristas brasileiros e de muitos outros mundo afora, eu gostaria de avançar para refletir sobre os sistemas do Sistema Brasileiro de Justiça Multiportas.
A juridificação é um reducionismo cientificista contra a dimensão dialógica do fenômeno humano, na crença de que esse formalismo excessivo seria capaz de controlar o mundo da vida. Entre as suas inadequações costuma-se destacar a redução do espaço para as deliberações políticas e éticas, a burocratização e formalização excessiva das relações sociais, a desumanização alienante das relações cotidianas e a reprodução de desigualdades sociais e econômicas.
Isto posto, seguem mais indagações. Somos capazes de fazer prevalecer os princípios que acolhem a complexidade dos sistemas-problemas jurídicos? Ou continuaremos a alimentar a prática de um direito monológico, estilo geométrico, sem espaço para a dialética? O que precisamos pesquisar, conversar e aprender para o êxito de um processo como método de solução de problemas, conforme previsto no CPC?
O chamado sistema brasileiro de justiça multiportas, em sua complexidade, é composto por um sistema dialético, aberto, em que a idéia de imparcialidade deve ser substituída pela de equiparcialidade. Isto porque a comunicação empática ou compassiva do mediador de círculos de diálogos ocorre numa ambiência de comportamento equifinal; qual seja, comportamento dinâmico, que vai mudando com o andamento da comunicação, até a hipótese de independer das suas condições iniciais. Tal sistema dialético, aberto, é limitado por um modelo linear de equilíbrio (determinado por uma ordem jurídica), com a característica de sistema fechado. Esta reflexão baseia-se na obra “Pragmática da Comunicação Humana. Um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação”. (WATZLAVICK, Paul; BEAVIN, Janet; JACKSON, Don).
Operado no campo do Direito como método de solução adequada de disputas, a prática desse sistema necessita de ambiente de liberdade e de boa-fé, que integre, a) o garantismo de regras jurídicas de conduta; b) a atuação do mundo da vida nas pessoas reunidas em busca de solucionar a disputa e c) o consequencialismo das regras sobre regras, aplicado conforme os princípios e critérios fundantes da ordem jurídica institucionalizada.
De modo mais simples, conforme o disposto no Art. 8º do CPC, “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Enfim, com juiz ou sem juiz, a decisão legítima vai muito além da incipiente indicação de determinada regra de conduta; prevalecendo, no sistema multiportas, a dialética da consensualização (sistema aberto) cujo limite está no ordenamento jurídico aplicável (sistema fechado).
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