Isaac Luna Ribeiro

A era da IA-dvocacia

Postado em 15 de julho de 2025 Por Isaac de Luna Ribeiro Advogado, cientista político, mestre em Direito (UFPE), especialista em Realidade Política Brasileira (UNICAP), membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e da Academia de Letras de Jaboatão dos Guararapes (ALJG), professor e coordenador do curso de Direito da Uninassau Juazeiro do Norte.

1- Nota introdutória

    A pressente missiva é meramente ensaista, produto da observação empírica da realidade contemporânea a partir dos espaços de atuação no labor advocatício e no chão da sala de aula dos cursos de formação jurídica.

    Nesse momento de entusiasmo com o uso de algoritmos, amiúde em substituição do exercício racional na solução dos mais diversos desafios que engendram a atuação dos profissionais do Direito, ocorreu-me refletir: teria, enfim, a tão criticada denominação “operadores do direito”, se imposto de fato? O futuro próximo do mister jurídico será o de operar “máquinas inteligentes” que lhe fornecerão as respostas certas para cada caso concreto, poupando o cérebro humano do penoso exercício do pensar?

    Essa talvez seja uma questão incômoda, principalmente nesse tempo em que o estudo da epstemologia jurídica e de seus pares no campo do saber jurídico não dogmático está em baixa, no limite da extinção como algo relevante.

    Para concluir essa nota preambular, cumpre esclarecer que, ao lado do empirismo acima alegado, as provocações de dois autores debruçados sobre a compreensão do ambiente contemporâneo provocaram o teor desse breve ensaio, quais sejam: o sul-coreano Byung-Chul Han, professor do departamento de Filosofia da Universidade de Harvard, e o cientista político norte-americano Yascha Mounk, professor Associado da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins em Washington.

    2- Da advocacia à IA-dvocacia, ou: entre a pílula azul e a pílula vermelha

    Comecemos com um lugar comum dito e redito pelos professores de IED, Sociologia Jurídica, Epstemologia Jurídica e Filosofia Jurídica nos dias iniciais da faculdade: como produto da cultura e da sociabilidade, o Direito é uma invenção da inteligência humana. A propósito, não foi, é. Ou seja: continua sendo, contingentemente, uma invenção e reinvenção entranhada nas nuances humanas. O que amedrontava e não amedronta mais, mas, pode voltar a amedrontar; o que causava espécie e perplexidade e não causa mais, mas, pode tornar a causar; o que era e não é mais, nada obstando vir novamente a ser.

    O fenômeno jurídico é socioantropológico-político, depende do ambiente, ou melhor da captação, do entendimento do mundo circundante e de como a ambiência de cada tempo impacta os grupos sociais. O legislador e o intérprete, humanos, demasiado humanos, são seres afetáveis e afetados por essa entropia caótica da multiculturalidade contingente que permeia a humanidade. O desejo, o medo, a ambição, a consciência, a inveja, a ganância, os sonhos… tudo que compõe a matéria do Direito, principalmente o “arrepio da pele”, como diz Byung-Chul Han, é alheio ao cérebro eletrônico.

    A propósito, por honestidade, nem tudo. Há um elemento do Direito captável pelos algoritmos, que não depende do arrepio da pele, da fervura do sangue ou da inquietação do espírito: trata-se da legislação. Aqui o cérebro eletrônico é formidável na capacidade de catalogar, comparar, encontrar padrões e sugerir probabilidades com base no que já está dado e registrado. Ele organiza e oferece um incrível repertório de argumentação e padrões decisórios que reproduz, mas, nada produz de episteme jurídica. Um outro lugar comum se faz necessário nesse particular: claro está que nessa linha de raciocínio que fundamenta a reflexão, a legislação não é e não encerra o Direito. É parte dele, mas não é ele. Saber a lei, nessa perspectiva, não é saber o Direito.

    A IA-dvocacia, incipiente nessa quadra da história, é o produto desse processo transitório de substituição de cérebro humano pelo cérebro eletrônico no pensar jurídico. Por essa perspectiva, a IA-dvocacia nada cria ou produz, apenas reproduz a partir do que já está dado, mitigando ou, no limite, anulando um dos mais extraordinários desideratos do labor advocatício, que é, pelo arrepio da pele, a fervura do sangue, as inquietações do espírito e a captura da nervura subjetiva do ambiente, provocar a mudança, a revisão, a reflexão, o incômodo, o mal-estar que emprenha o velho Direito e produz a gestação de um novo Direito, humano, demasiado humano.

    Essa preocupação não é meramente apocalíptica, ou como sugere Yascha Mounk, uma “vingança dos tecnopessimistas”. Estudos realizados em Harvard, Cambridge e MIT convergem no sentido de apontar que o uso excessivo da IA provoca uma espécie de “descarregamento cognitivo”, comprometendo o desenvolvimento intelectual, o pensamento crítico e a originalidade criativa. De acordo com o neurocientista e especialista em comportamento, André Cruz, quando o cérebro entende que uma mensagem já vem pronta, ele não precisa processar. Isso gera dependência de respostas prontas, déficit de atenção e superficialidade, de modo que o excesso de automatização pode reduzir a memória de longo prazo e enfraquecer a capacidade de análise profunda. Esse também é o ponto trazido por Miguel Nicolelis, que aponta que quando o cérebro, de uma maneira geral, percebe que nós estamos subcontratando nossas funções cerebrais para máquinas ou qualquer coisa fora do domínio do cérebro, ele começa a entender que não precisa mais gastar energia no processo cognitivo.

    O fato é que, retomando as reflexões de Yascha, uma análise real e objetiva sobre o impacto da tecnologia da informação nos últimos 20 anos na configuração da realidade social nos mostra que, antes de ter se tornado a “grande ágora virtual e virtuosa”, aonde a democracia mundial se consolidaria em definitivo pelo amplo debate público que proporcionaria, como anunciavam os “tecno-otimistas”,  ela serviu muito mais ao fortalecimento de grupos extremistas, populismos e teses antiliberais e antidemocráticas.

    A pergunta é: e o Direito, o que tem a ver com essa preocupação de filósofos e cientistas políticos? Estaria a ‘matéria jurídica’ livre dessa contaminação antiliberal e antidemocrática no uso do cérebro eletrônico como formulador e difusor do pensamento jurídico?

    3 – Retalhos inconclusivos

    A parte toda a provocação, não se trata de negar o novo, que, como diz o poeta latino-americano na sua canção, sempre vem. A “inteligência artificial” é uma realidade e pode contribuir bastante na prática da advocacia, realizado com agilidade e alta assertividade tarefas burocráticas, repetitivas e padronizáveis. Isso pode proporcionar ao advogado(a), profissional que tem por labor pensar o Direito, maior flexibilidade de tempo para debruçar-se sobre casos, teses e análises sociojurídicas que orientam a sua atuação na defesa dos direitos que lhe são confiados e na responsividade diante das batalhas que envolvem a liberdade, a democracia e a cidadania, pressupostos para a existência da advocacia.

    Importante lembrar que, como máquina programada e treinada para dar uma resposta, na ausência de um dado prévio registrado na big-data, a IA pode criar uma resposta a partir de padrões prévios, tipo uma lex tertia não admitida como prática legislativa e não existente no mundo do Direito. Não raros já são os casos de IA-petições com jurisprudências ou legislações criadas pelo cérebro eletrônico para dar a resposta solicitada. Isso é grave e preocupante. Se não tiver o conhecimento prévio necessário para analisar o que lhe é entregue pela máquina, o IA-dvogado corre o risco de ser cancelado.

    De mais a mais, como ferramenta auxiliar, trata-se de uma invenção extraordinária da inteligência humana. Como substituta dos botões de carne e osso e das agonias existenciais parteiras da mudança, é um instrumento de empobrecimento do pensar humano e, a reboque, do Direito.

    Uma última questão: até quando os concursos públicos e as provas do Exame de Ordem irão insistir em testar o cérebro humano com questões para as quais o cérebro eletrônico já o substituiu em grande medida? Dito ao inverso: não está na hora de mudar a lógica e começar a formar e selecionar a partir do que é exclusivamente humano, ou seja, do pensamento crítico, reflexivo e sócioatropologicamente embasado?

    Enfim, considerando a possibilidade de uma escalada irrefletida dos algoritmos como produtores do conhecimento jurídico, a IA-dvocacia pode ser a coveira da Advocacia, assim como IAdemocracia tem se mostrado potencial coveira da liberdade e da democracia? Ou, trocando em miúdos com a provocação de Byung: ainda há luz fora da caverna digital?

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