Maria Emilia

A formação do imaginário feminino no discurso literário: o caso de Capitu – Parte 3

Postado em 18 de junho de 2025 Por Maria Emília M. de Oliveira Queiroz e Costa Advogada e Professora

Na parte anterior desse estudo, na publicação anterior, vimos que o plano de Capitu libertou Bentinho do convento, para que assumisse seu papel de homem na sociedade. No episódio do seu primeiro beijo, que protagonizou com ela, vou sua imagem no reflexo dos olhos dela, num reflexo narcísico perfeito. Mas, a ilusão de completude, que para Lacan não é real, não perduraria ad eternum no casal, como mostrou Machado de Assis com o desfecho do romance.

Temos em Brandão (2006, p. 114): que a mulher é aquela que questiona o narcisismo masculino, apresentando-se como estranha. Desejada e percebida como complemento, ela remete à lógica do Um, da identidade que supõe a possibilidade de fusão. O que há a partir dessa lógica é a valorização do mesmo e a desvalorização da diferença. Assim o reflexo de Capitu começou a se embaçar quando Bentinho estava no Seminário e foi visitado por José Dias. Sentindo falta da amada, não se controlou e instintivamente lançou a pergunta: “Capitu, como vai?”

Nesse momento, José Dias explicitou “uma ponta de Iago”, e, motivado pela rixa que tinha com o pai dela (Pádua), maliciosamente fez questão de responder: “Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que se case com ela…” (ASSIS, 2006, p. 87). O impacto dessa resposta foi tão grande que Bentinho declarou que: “um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu ao repetir comigo as palavras de José Dias…” (ASSIS, 2006, p. 88). Também no episódio do “dandy alado”, temos olhares marcantes que atormentam Bentinho de ciúmes. Na época, era costume rapazes irem encontrar suas namoradas a cavalo.

Um desses rapazes, que se chamavam por dandies, surge no momento em que Bentinho acabara de despedir-se de Escobar, que ainda não havia sido apresentado a Capitu, que de dentro de casa, à janela, indagava dele quem era tamanho amigo de quem se despedira com tanto afeto. Nas palavras do próprio Bentinho, temos que: Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final; assim faz o destino, que é o seu próprio contra-regra.

O cavaleiro não se conformou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. (Grifo nosso).

Caldwell (2008, p. 95) levanta uma questão interessante sobre essa passagem, a da possibilidade do ciúme que acometeu Bentinho (Santiago, na obra da autora) ser de origem homossexual. Isso porque, apesar de, no reflexo dos olhos de Capitu ver-se “homem”, no episódio do dandy alado acabara de despedir-se calorosamente de Escobar e estava aguardando ansioso: Observa o ônibus partir para ver se Escobar o ama o bastante para olhar para trás à distância, “mas não olhou”.

Consideremos do dândi, que representa Escobar para ele, nesse instante: “o cavalo andava, a cabeça deixava-se ir voltando para trás”. fitando Capitu” [sic].

A frustração de Bentinho pelo que considerou rejeição de Escobar faz com que ele transfira ao dandy, o ciúme inconsciente que sentia dele em relação a Capitu, antes mesmo de se conhecerem. O ápice do embaçar do reflexo narcísico de Bentinho nos olhos de Capitu acontece no episódio do enterro de Escobar. Mesmo depois de morto a figura do melhor amigo representa no íntimo de Bentinho objeto de ciúme em relação à Capitu.

Assim, no sepultamento, observando o comportamento dos presentes, inclusive o de Sancha, viúva a quem vinha cortejando, fixa-se em Capitu; referindo-se às suas lágrimas, disse: As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga e quis levá-la, mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (ASSIS, 2006, p. 154).

Nessa passagem o “nadador da manhã” era Escobar. Bentinho usou este termo referindo-se a forma como o amigo havia morrido, “tragado” pelas ondas do mar, apesar de bom nadador que era. Depois desses acontecimentos, Bentinho entra numa boa fase na vida, com sucesso na advocacia, harmonia com Capitu e acompanhando o crescimento de Ezequiel. Até que a própria Capitu alerta-lhe haver uma expressão estranha no olhar do menino, assemelhada a de Escobar. Bentinho inicialmente releva a observação da esposa e diz que “os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe” (ASSIS, 2006, p. 160).

Essa associação do olhar da criança com o da mãe vai acarretar numa cumplicidade quando da quebra do reflexo perfeito. Nossos personagens, ciumentos que são, desejam que a primeira imagem marcante de sua mulher, que o refletia em sua perfeição, se mantivesse cristalizada ao longo da vida do casal. O que Brandão (2006, p. 113) explica da seguinte forma: A representação literária da mulher, como objeto de amor narcísico, é reflexo caracterizado pela imobilidade e fixidez, pois o alvo do  olhar de Narciso recai num espaço restrito, onde a sombra amada não pode estremecer, para não se deformar. Assim, quando a imagem da mulher não mais reflete a suposta perfeição de seu homem, o elemento narcísico dele o faz reagir, e, no caso dos nossos protagonistas, reagiram violentamente. Não podemos, entretanto, excluir a hipótese de que essa posição psicanalítica pode ser apenas mais uma trama ideológica para legitimar a violência doméstica contra a mulher, tal qual as teses que outrora vigoraram de violência, até homicídio, justificado sob o discurso da legítima defesa da própria honra.

Mais realístico o emprego da metáfora feito por Foucault (1992, p. 25), comentando sobre os reflexos no espelho, entretanto formula o enunciado referindo-se ao episódio do pintor de frente à tela que pinta, no caso, Velasquéz e sua obra intitulada Las meninas: “É preciso, pois, fingir não saber quem se refletirá no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nível de sua existência”. Em assim agindo, e não em busca da completude que Lacan acredita ser inalcançável, os relacionamentos estabelecer-se-iam em bases mais concretas, evitando decepções quando da constatação de possíveis imperfeições do outro ou de si mesmo.

Numa passagem, Bentinho expressa o fim da identificação do seu narciso interior ao fitar os olhos de Capitu: “Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais do que separar-nos”. Assim, o casal que vivera o cume da intimidade na troca de olhares que precedeu o primeiro beijo, onde Bentinho enxergou no reflexo dos olhos de Capitu sua face de “homem”, não mais cria na completude. Isto porque Bentinho prendia-se a esta ilusão, de completude, enquanto mirava-se nos olhos de cigana oblíqua e dissimulada e via seu retrato, em perfeição.

Esse encanto foi paulatinamente acabando, pelo reconhecimento de supostas imperfeições na imagem refletida de Capitu. Por fim, após associar seu olhar ao do menino, figura personificada da imperfeição da esposa, não mais conseguia, ao mirar-lhe os olhos, enxergar sua plenitude. O espelho dos olhos de ressaca só refletia a própria limitação de Bentinho; por isso, não queria mais vê-la e afastou Capitu do alcance de seus olhos, para não mais ser atormentado pela realidade: ele não era perfeito!

É esse o imaginário da mulher na literatura machadiana, que se caricaturizou em Capitu: a mulher patriarcal e útil ao homem enquanto reflete a imagem narcísica dele perfeita em seus olhos. Quando a ilusão da completude dada pela imagem se desfoca, aquela mulher é descartada para que não o obrigue a ver sua própria realidade cheia de defeitos.

Com essa terceira parte concluímos a análise e esperamos ter colaborado para enriquecer as discussões do tema!

REFERÊNCIAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora LTDA, 2006.

BRANDÃO, Ruth Silvano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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