Amanda Dias de Almeida 2

A linha que separa o lícito do ilícito: Análise crítica da elisão e elusão fiscal à luz da nova reforma tributária no Brasil e do comitê gestor do IBS

Postado em 01 de novembro de 2025 Por Amanda Dias de Almeida Acadêmica de Direito, atualmente cursando o 8º período da Universidade Católica de Pernambuco. Atua na área de Direito Público na 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, com ênfase nas esferas cível, administrativa e tributária. Desenvolve pesquisas sobre eficiência e ética do dever fiscal.

O sistema jurídico-tributário brasileiro atravessa, historicamente, um cenário de instabilidade interpretativa e complexidade normativa. A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de 2023, inaugura uma nova etapa da tributação nacional, instituindo o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Comitê Gestor do IBS, com o propósito declarado de simplificar o sistema, reduzir distorções e aumentar a segurança jurídica.

Todavia, a reforma reacende um debate que atravessa décadas: a distinção entre o planejamento tributário lícito, a elisão, e as condutas abusivas ou fraudulentas, compreendidas como elusão e evasão fiscal. A fronteira entre esses institutos, muitas vezes, se mostra difusa, sobretudo em um sistema jurídico marcado pelo formalismo e pela multiplicidade normativa.

O presente artigo tem por objetivo examinar criticamente se o novo modelo tributário, ao buscar a neutralidade e a não cumulatividade plena, é capaz de eliminar a incerteza que permeia o combate à elusão fiscal ou se, ao contrário, apenas desloca a linha divisória entre o lícito e o ilícito para novas zonas de conflito.

1. A Fronteira entre Elisão, Elusão e Evasão Fiscal

A elisão fiscal constitui o conjunto de estratégias adotadas pelo contribuinte para reduzir ou adiar a incidência tributária de forma lícita, mediante o aproveitamento das brechas ou das opções legítimas previstas em lei. Trata-se, portanto, de exercício legítimo da autonomia privada, dentro dos limites da legalidade tributária, consagrada no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal.

A evasão fiscal, por sua vez, implica violação direta da norma tributária, mediante fraude, simulação, omissão ou falsidade. É conduta ilícita, tipificada inclusive como crime contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/1990).

Entre ambas, emerge a elusão fiscal — prática que não falsifica fatos, mas que distorce a finalidade da norma. Segundo Heleno Taveira Torres, a elusão “é o fenômeno em que o contribuinte, sem recorrer à fraude, adota formas jurídicas atípicas, artificiais ou anômalas, com o único propósito de contornar a norma tributária”.

A elusão é, portanto, uma categoria intermediária, que desafia os critérios tradicionais de licitude. Em razão disso, o legislador incluiu no Código Tributário Nacional o parágrafo único do artigo 116, autorizando a autoridade administrativa a desconsiderar atos ou negócios jurídicos simulados. Entretanto, o dispositivo permaneceu inaplicado por quase duas décadas, pela ausência de regulamentação e pela insegurança quanto ao conceito de “simulação”.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 636.941/RS (Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 04.09.2020), tentou enfrentar a questão, mas o fez de modo lacônico, sem definir parâmetros claros sobre o que configura abuso de forma. Assim, manteve-se a zona cinzenta entre elisão e evasão, ampliando a insegurança jurídica e estimulando a multiplicação de litígios tributários.

2. A Reforma Tributária e o Mito da Neutralidade

A Emenda Constitucional nº 132/2023, ao instituir o IBS e o Imposto Seletivo, inspira-se no modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), amplamente utilizado na União Europeia. O objetivo é alcançar a neutralidade tributária, eliminando cumulatividade e distorções econômicas.

Entretanto, como observa Ricardo Lobo Torres, a neutralidade é um ideal difícil de ser atingido em sistemas complexos, pois “toda exceção normativa é um convite à discricionariedade e à desigualdade”.

A reforma, apesar de prometer uniformidade, conserva regimes especiais, exceções e benefícios setoriais, como o tratamento diferenciado para a cesta básica nacional e as exceções à não cumulatividade plena. Esses mecanismos, ainda que justificáveis sob a ótica social, comprometem o princípio da neutralidade e reintroduzem margens para planejamentos tributários sofisticados.

Além disso, há indícios de deslocamento da carga tributária para o setor de serviços, tradicionalmente menos favorecido em regimes de créditos tributários, o que poderá induzir à busca por novas formas de planejamento. Esse fenômeno é apontado por Geraldo Ataliba, ao aduzir que a forma de incidência é determinante da conduta do contribuinte; quanto maior a complexidade e a disparidade, maior a propensão à reorganização estratégica.

Logo, o novo sistema, embora simplifique formalmente, pode reproduzir, sob outra roupagem, as mesmas distorções e disputas do modelo anterior.

3. O Comitê Gestor do IBS e a Centralização Federativa

O Comitê Gestor do IBS é o órgão encarregado de administrar, arrecadar e distribuir o imposto entre os entes federados. Trata-se de inovação institucional relevante, pois cria uma estrutura única de coordenação tributária, com atribuições técnicas e normativas.

A despeito de sua intenção de racionalizar o sistema, o Comitê suscita questionamentos sobre sua natureza jurídica e seu impacto sobre a autonomia federativa. Conforme salienta José Souto Maior Borges, a competência tributária é expressão direta da soberania fiscal dos entes federativos, e qualquer centralização excessiva pode “diluir a legitimidade política da tributação”.

Isto posto, a criação de um órgão colegiado, com representantes de diferentes entes e poderes decisórios amplos, aproxima-se de uma estrutura quasi-autárquica, que poderá funcionar como um “quarto poder da República”. O risco reside na tecnocratização do poder tributário, com redução da transparência e da representatividade democrática nas decisões fiscais.

Além disso, a transferência do contencioso tributário relativo ao IBS para a Justiça Federal suscita potenciais conflitos de competência e a sobreposição de interesses entre as procuradorias estaduais e federais, podendo criar um novo tipo de litigiosidade, agora de caráter nacionalizado.

4. Propósito Negocial

O critério do “propósito negocial” (business purpose test), amplamente utilizado no direito tributário internacional, busca distinguir operações com justificativa econômica real daquelas artificialmente estruturadas para obter vantagens fiscais. No Brasil, contudo, a tradição formalista e a interpretação literal da norma dificultam a aplicação dessa abordagem substancial.

Como observa Alfredo Augusto Becker, “o formalismo jurídico, ao privilegiar a forma sobre a substância, converte o Direito Tributário em instrumento de legitimação de construções artificiais”. Essa constatação torna-se ainda mais relevante no contexto contemporâneo, em que novos modelos de negócios — baseados em intangíveis, dados e serviços digitais — desafiam a própria definição de fato gerador.

Ora, a reforma tributária, ao reformar com o retrovisor, dirige-se a um sistema econômico do século XX, sem prever adequadamente as transformações tecnológicas e as novas dinâmicas da economia digital, onde as fronteiras da tributação são fluidas e interconectadas.

Conclusão

A Emenda Constitucional nº 132/2023 representa um avanço institucional relevante, mas não uma solução definitiva para a crise do sistema tributário brasileiro. As promessas de simplificação e neutralidade são limitadas pela persistência de regimes especiais e pela ausência de uma norma antielisiva clara e eficaz.

O parágrafo único do artigo 116 do CTN permanece carente de regulamentação que defina critérios objetivos de desconsideração de atos abusivos. O Comitê Gestor do IBS, embora concebido como mecanismo de cooperação federativa, pode concentrar poder de forma excessiva, fragilizando o pacto federativo e criando novos focos de conflito.

Nesse sentido, a consolidação de um ambiente tributário mais justo e previsível depende menos da multiplicação de tributos e mais da construção de critérios substantivos que conciliem legalidade, eficiência econômica e justiça fiscal. A adoção de uma norma geral antielisiva moderna, inspirada no propósito negocial, seria passo essencial para equilibrar a relação entre Fisco e contribuinte.

Como sintetiza Heleno Taveira Torres, “não há sistema tributário justo enquanto houver incerteza sobre o limite entre a elisão e a evasão; a segurança jurídica é o primeiro tributo que o Estado deve pagar ao contribuinte”.

Em suma, a reforma tributária é um marco necessário, mas insuficiente. Sua eficácia dependerá menos da engenharia normativa e mais da capacidade de o Direito adaptar-se à velocidade das transformações econômicas, tecnológicas e sociais. O futuro do Direito Tributário brasileiro exige não apenas novas leis, mas uma nova mentalidade interpretativa, que privilegie a substância sobre a forma e a transparência sobre o artifício.

Referências Bibliográficas

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 1997.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963.

BORGES, José Souto Maior. Norma Tributária e Competência. São Paulo: Dialética, 2001.

TORRES, Heleno Taveira. Planejamento Tributário: Limites e Possibilidades. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

TORRES, Ricardo Lobo. Direitos Fundamentais do Contribuinte. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BAKER, Philip. Double Taxation Conventions and International Tax Law. London: Sweet & Maxwell, 2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966).

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 636.941/RS. Rel. Min. Cármen Lúcia. DJe 04 set. 2020.

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site