A proposta de implantação da Escola de Sargentos do Exército Brasileiro (ESE) no interior da Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe, na Região Metropolitana do Recife, representa um dos mais preocupantes exemplos contemporâneos de tensionamento entre o discurso de desenvolvimento e o dever constitucional de proteção ambiental. O caso, que se encontra sob análise do Ministério Público Federal, revela a fragilidade das instituições ambientais brasileiras diante de interesses setoriais e de decisões administrativas que violam frontalmente os princípios do Estado de Direito Ambiental.
Trata-se de um episódio que transcende a discussão técnica sobre o licenciamento de uma obra pública. O projeto da ESE desafia o núcleo do pacto constitucional de 1988, que estabeleceu o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental e impôs ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nesse contexto, a decisão do Exército Brasileiro de promover desmatamento de cerca de 94 hectares de Mata Atlântica em uma área de proteção ambiental representa um retrocesso jurídico e político de grandes proporções.
A Constituição é clara ao definir a Mata Atlântica como patrimônio nacional e a submeter a supressão de vegetação primária a rigoroso controle. A APA Aldeia-Beberibe, criada pelo Decreto Estadual nº 34.692/2010, cumpre papel essencial na preservação dos mananciais que abastecem a Região Metropolitana do Recife e na conservação de um dos últimos remanescentes florestais da zona norte pernambucana. A supressão dessa vegetação, além de violar a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), contraria a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei nº 9.985/2000) e o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), que estabelecem parâmetros inafastáveis para o uso sustentável do território.
O empreendimento foi anunciado sem a devida realização de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), sem consulta às comunidades tradicionais diretamente afetadas e sem a apresentação de alternativas locacionais — medidas obrigatórias que decorrem do princípio da precaução e do dever de prevenção do dano ambiental. Trata-se, portanto, de uma conduta administrativa que ignora o próprio sistema jurídico de proteção ambiental e desconsidera a função essencial das unidades de conservação como instrumentos de política pública.
A crise ambiental global e os compromissos assumidos pelo Brasil no cenário internacional agravam a gravidade desse quadro. Com a realização da COP 30 em Belém, o país se apresenta ao mundo como líder climático e defensor da floresta em pé, mas internamente convive com iniciativas que colocam em risco ecossistemas estratégicos e comunidades tradicionais. Essa contradição compromete a credibilidade da política ambiental brasileira e sinaliza um descompasso entre a retórica diplomática e a prática administrativa nacional. A construção de um grande complexo militar dentro de uma área de preservação ambiental projeta para o mundo a imagem de um Estado que flexibiliza suas próprias normas ambientais em nome de uma visão ultrapassada de desenvolvimento.
O caso também revela falhas graves de governança pública. Com base em parecer da Advocacia-Geral da União (Ofício nº 616/2025), o Exército Brasileiro considerou dispensável o licenciamento ambiental e a autorização de supressão vegetal para obras militares relacionadas ao preparo e emprego das Forças Armadas. Essa interpretação, entretanto, não possui respaldo em norma legal ou constitucional. A Portaria Normativa nº 15/2016 do Ministério da Defesa, utilizada como fundamento, não tem hierarquia suficiente para afastar o dever de licenciamento imposto pela Constituição e pela legislação federal. A adoção desse entendimento viola o princípio da legalidade administrativa e cria um perigoso precedente de autolicenciamento das Forças Armadas, em desacordo com a Lei Complementar nº 140/2011.
Além das ilegalidades ambientais, o projeto suscita preocupações orçamentárias. O orçamento estimado em R$ 1,8 bilhão não inclui recursos para a compensação ambiental obrigatória prevista no art. 36 da Lei do SNUC e regulamentada pelo Decreto nº 6.848/2009, que determina a destinação de 0,5% a 5% do valor da obra para mitigar danos ambientais. A ausência dessa previsão afronta a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) e fere os princípios da economicidade e da eficiência administrativa. A insistência em uma alternativa locacional ambientalmente inviável, quando há áreas disponíveis fora dos limites da APA, compromete o planejamento público e demonstra ausência de racionalidade técnica na gestão de recursos públicos.
Estudos elaborados por entidades civis, como o Fórum Socioambiental de Aldeia, identificaram diversas áreas alternativas que atenderiam às necessidades logísticas do Exército sem afetar ecossistemas protegidos. A recusa em analisá-las indica não uma necessidade estratégica, mas uma decisão política baseada em conveniências de curto prazo. Essa postura contraria o princípio da supremacia do interesse público primário e fragiliza a credibilidade institucional das Forças Armadas, que deveriam zelar pela legalidade e pela defesa dos bens públicos.
A situação torna-se ainda mais delicada diante da presença de comunidades tradicionais na área, como a Comunidade Quilombola dos Camarás e o Povo Indígena Karaxuwanassu (Terra Indígena Marataro Kaetés). A ausência de consulta prévia, livre e informada, como determina o artigo 6º da Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, representa violação direta dos direitos coletivos desses povos e descumprimento de obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro. Essa omissão agride o princípio da dignidade humana e reforça o histórico de invisibilidade e exclusão das populações tradicionais em processos de decisão sobre seus territórios.
O problema de fundo é a persistência de uma concepção ultrapassada de desenvolvimento, que associa progresso à expansão física da infraestrutura, independentemente de seus custos ambientais e sociais. O desafio contemporâneo é justamente o de compatibilizar segurança, economia e sustentabilidade. As experiências internacionais demonstram que o verdadeiro desenvolvimento ocorre quando os projetos públicos são planejados de forma integrada, com base em estudos técnicos, participação social e respeito ao meio ambiente. Tratar a destruição ambiental como contrapartida inevitável ao desenvolvimento é negar os avanços científicos e jurídicos conquistados nas últimas décadas.
A proposta de compensação ambiental apresentada pelo Exército para justificar o desmatamento da Mata Atlântica é juridicamente inconsistente e eticamente inaceitável. Não há compensação possível quando a área afetada já é legalmente protegida e quando os danos atingem ecossistemas de altíssima relevância ecológica. A criação de novas unidades de conservação, aventada como contrapartida, não elimina o fato de que se pretende destruir parte de uma floresta cuja proteção já é garantida pela Constituição. O que se apresenta como medida mitigatória é, na realidade, uma tentativa de legitimar a violação da própria norma ambiental.
É preciso reconhecer que a crise ambiental que o planeta atravessa não permite mais flexibilizações interpretativas ou omissões institucionais. A emergência climática, os eventos extremos e o colapso dos ecossistemas demonstram que o modelo de desenvolvimento baseado em degradação ambiental perdeu legitimidade e viabilidade. O Estado brasileiro tem o dever jurídico e moral de ser exemplo de coerência normativa, especialmente em um momento em que o país sediarás a COP 30 e reafirma perante a comunidade internacional o compromisso com a agenda climática.
A construção da Escola de Sargentos do Exército na APA Aldeia-Beberibe é um caso emblemático do conflito entre o discurso político e a prática administrativa. Ele põe à prova a efetividade do Estado de Direito Ambiental e a capacidade do Brasil de implementar políticas públicas alinhadas com seus compromissos constitucionais e internacionais. O Exército, o IBAMA e a AGU, ao flexibilizarem o cumprimento da legislação ambiental, correm o risco de fragilizar a confiança pública nas instituições e de legitimar um precedente perigoso de autossuficiência institucional em detrimento da legalidade.
A sociedade brasileira espera de suas instituições o exemplo de respeito à lei e à transparência. Espera-se do Exército Brasileiro — instituição que simboliza soberania e disciplina — a defesa da vida em todas as suas formas e não sua ameaça. O verdadeiro ato de soberania, em tempos de emergência climática, é agir com responsabilidade ecológica e assegurar que o desenvolvimento ocorra dentro dos limites do possível e do sustentável.
A proteção da APA Aldeia-Beberibe não é uma causa local, mas uma afirmação de princípios. É a defesa do Estado de Direito Ambiental, da coerência institucional e do dever de precaução que deve orientar todas as ações públicas. A escolha que se impõe ao Brasil é entre reafirmar sua liderança ambiental global ou ceder à lógica do retrocesso. Proteger Aldeia-Beberibe é proteger o futuro das próximas gerações e reafirmar o compromisso constitucional com a vida.
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