Ser negro no Brasil já é um desafio diário. Ser LGBTQIA+ também. Agora, imagine viver sob o peso das duas opressões ao mesmo tempo. É essa a realidade de milhares de pessoas LGBTQIA+ negras, que enfrentam não apenas a exclusão, mas a negação sistemática de seus direitos mais básicos: o direito de viver, de existir, de ser respeitado.
Apesar dos avanços legais no campo dos direitos LGBTQIA+, pessoas negras que integram essa comunidade seguem expostas à violência extrema, à exclusão social e à negligência institucional. Este artigo analisa dados recentes e evidencia os impactos sociais da interseccionalidade entre racismo e LGBTfobia.
No Brasil, as conquistas legais relacionadas à diversidade sexual e de gênero ainda não alcançaram, de forma justa e equitativa, a população LGBTQIA+ negra. Esse grupo enfrenta uma realidade marcada por opressões múltiplas, nas quais o racismo e a LGBTfobia operam juntos para limitar o acesso à cidadania plena. Este texto discute como essa intersecção molda a violência vivida por pessoas lésbicas, gays, trans e travestis negras, bem como os impactos sociais da constante violação de seus direitos.
Enquanto parte da sociedade avança na pauta da diversidade, essa população continua sendo alvo preferencial da violência, da marginalização e do esquecimento.
De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2023, 70% das pessoas LGBTQIA+ assassinadas no Brasil eram negras. O número é alarmante — mas, infelizmente, não é novo e cheias de problemáticas na garantia de direitos como sera mostrado ao longo do texto
Mulheres lésbicas negras vivem sob a marca de três violências estruturais: o racismo, o machismo e a lesbofobia. Entre 2014 e 2017, de acordo com o dossiê Lesbocídio, 88% das lésbicas assassinadas no Brasil eram negras. Além da invisibilidade midiática e institucional, essas mulheres são alvo de violências como o “estupro corretivo”, uma prática ainda recorrente em muitos territórios brasileiros.
Mesmo dentro dos movimentos feministas e LGBTQIA+, a pauta das mulheres lésbicas negras é frequentemente negligenciada, revelando a necessidade urgente de uma abordagem que considere essas especificidades.
Entre as pessoas trans, a situação é ainda mais grave. Segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos. Mulheres trans negras, em especial, estão entre as mais expostas à violência, à precarização do trabalho e ao abandono pelo Estado.
O acesso à educação, saúde e emprego formal é drasticamente limitado. Cerca de 90% dessas mulheres estão em situação de prostituição — não por escolha, mas por ausência de alternativas. O sistema empurra essas pessoas para a marginalidade e, posteriormente, para a morte.
Homens gays negros enfrentam a hipersexualização no imaginário social e a criminalização real nos espaços públicos e institucionais. Dados do projeto TODXS apontam que essa população tem maior chance de sofrer abordagens policiais violentas, ser expulsa de espaços públicos e ser vítima de discriminação no trabalho.
Além disso, há o racismo estrutural dentro da própria comunidade LGBTQIA+, que marginaliza e exotifica corpos negros em espaços supostamente seguros.
Esses dados não são apenas números. São vidas perdidas, histórias interrompidas, sonhos que nunca se realizaram. Tudo isso porque nosso país insiste em escolher quem merece viver com dignidade — e quem não.
A exclusão da população LGBTQIA+ negra começa cedo. Na escola, o bullying, o racismo e a homotransfobia expulsam esses jovens das salas de aula. Muitos não chegam ao ensino médio. Outros são forçados a esconder quem são para sobreviver num ambiente hostil e excludente.
Na saúde, não é diferente. Relatos de racismo e preconceito são comuns nos atendimentos, o que leva muitos a evitarem ou desconfiarem do sistema de saúde pública. Isso afeta diretamente a saúde mental e física dessa população, especialmente quando falamos em acesso a tratamento hormonal, cuidados preventivos e apoio psicológico.
E o mercado de trabalho? Para a maioria, portas fechadas. Muitas pessoas trans negras, por exemplo, veem na prostituição o único caminho possível de sobrevivência — não por escolha, mas por falta de oportunidades reais.
Embora o Brasil tenha avançado em algumas legislações — como a criminalização da homofobia e transfobia em 2019 — a aplicação da lei é lenta, desigual e falha. Os casos de violência muitas vezes não são investigados com seriedade. A impunidade virou regra.
E onde estão as políticas públicas específicas para pessoas LGBTQIA+ negras? Quase inexistentes. Quando falamos de diversidade em campanhas ou ações institucionais, é comum ver uma paleta de rostos brancos e cisgêneros. Quem está na base da pirâmide segue invisível.
É preciso mais que representatividade: é preciso justiça
Apesar da criminalização da LGBTfobia pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, a aplicação da lei ainda é falha, especialmente nas periferias e entre a população negra. Poucos casos são investigados com seriedade, e a impunidade reforça a ideia de que essas vidas não importam.
A falta de políticas públicas específicas, o desmonte de conselhos de diversidade e a ausência de dados governamentais com recorte racial e de gênero agravam ainda mais a exclusão.
Não basta levantar bandeiras coloridas em períodos sazonais e fingir que a pauta está resolvida. A luta por justiça precisa ser constante, profunda e interseccional. Isso significa reconhecer que pessoas LGBTQIA+ negras têm demandas próprias, que exigem ações específicas e reparações históricas.
Queremos ver essas pessoas nos espaços de poder, nas universidades, no mercado de trabalho, na mídia — mas vivas, seguras e respeitadas. Viver não pode ser um ato de resistência. Tem que ser um direito garantido.
A luta por direitos LGBTQIA+ só será justa se incluir todas as vozes — especialmente aquelas que têm sido silenciadas por séculos. O racismo e a LGBTQIAfobia juntos formam um combo cruel que empurra pessoas negras LGBTQIA+ para as margens da sociedade.
Enquanto o Brasil seguir sendo o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, e enquanto essas mortes tiverem cor e classe, não há o que se comemorar. Não podemos falar de progresso enquanto mulheres lésbicas negras seguem sendo estupradas e assassinadas; enquanto pessoas trans negras morrem aos 35 anos; enquanto homens gays negros são mortos por serem quem são.
O Estado brasileiro falha sistematicamente em proteger, reconhecer e garantir direitos à população LGBTQIA+ negra. E essa falha não é um acaso: é parte de uma estrutura que produz e mantém desigualdades históricas.
Para uma pessoa LGBTQIA+ negra, nada é garantido. Nem a escola, nem a saúde, nem o direito ao trabalho. E muito menos o direito de existir com dignidade. O abandono do Estado é claro — mas ele também se revela na forma como essas pessoas são invisibilizadas nas políticas públicas, nas campanhas de diversidade e até mesmo na produção de dados.
As poucas políticas de inclusão existentes não consideram o recorte racial, e as políticas raciais raramente incluem o recorte LGBTQIA+. Essa falta de interseccionalidade neutraliza qualquer avanço real.
Enquanto mulheres lésbicas negras forem silenciadas, pessoas trans negras forem assassinadas e homens gays negros forem marginalizados, não se pode falar em igualdade, nem em democracia real.
É hora de romper o ciclo do luto e da invisibilidade. O país precisa ouvir, proteger e agir com prioridade por quem mais sofre. Justiça social só será possível quando os direitos deixarem de ser privilégio — e passarem a ser garantias universais, com atenção às interseccionalidades.
É urgente que o combate ao racismo e à LGBTQIAfobia caminhem lado a lado. Mas mais do que isso: é preciso colocar no centro da luta quem mais sofre com a opressão sistemática. Mulheres lésbicas negras, pessoas trans negras e homens gays negros não podem mais ser tratados como exceções ou apêndices da pauta.
Eles e elas são o coração da resistência, da cultura, da inovação e da luta por justiça neste país. E merecem mais do que homenagens pontuais ou hashtags no mês do orgulho: merecem vida, dignidade e reparação.
E se a gente realmente acredita que vidas LGBTQIA+ importam, precisamos começar pelas que estão mais em risco. Porque enquanto elas seguirem invisibilizadas, nenhuma conquista será completa.
Não basta sobreviver. É hora de viver. Com segurança, com respeito, com acesso a direitos.
LGBTQIA+ negras resistem. Mas merecem mais que isso. Merecem existir. Merecem viver.
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