A advocacia municipalista, exercida por profissionais privados que assessoram juridicamente prefeituras e câmaras municipais, tem sofrido, não raras vezes, um processo indevido de suspeição generalizada. Auditorias, alguns membros do Ministério Público e colegas das procuradorias de estados e municípios — ressalvada a maioria séria e parceira — por vezes adotam um olhar distante, carregado de preconceito, como se a contratação suplementar de escritórios fosse, por si, indício de irregularidade¹. Essa visão parte de uma premissa equivocada que ignora a natureza personalíssima (intuitu personae), intelectual e estratégica da atividade advocatícia, bem como a realidade multifacetada do federalismo brasileiro. Defender a impossibilidade de sujeitar a advocacia a certames de menor preço não constitui pauta corporativa, mas salvaguarda indispensável ao interesse público, que seria gravemente comprometido pela precarização técnica e pelo aviltamento de uma função essencial ao Estado de Direito².
O erro fundamental da tese que prega a licitabilidade irrestrita reside na tentativa de padronizar o que é, por definição, infungível em sua essência: a expertise, a estratégia e a confiança. A licitação, como procedimento, fundamenta-se na possibilidade de se estabelecerem critérios objetivos para bens e serviços de características uniformes, permitindo competição em igualdade de condições³. Tal premissa mostra-se absolutamente inaplicável ao universo jurídico. Não há como tabular ou mensurar em edital a argúcia de um raciocínio, a profundidade do conhecimento em área especializada, a experiência acumulada em litígios complexos ou a confiança que fundamenta a relação entre gestor público e patrono. A competição por menor preço, nesse contexto, levaria à seleção não do profissional mais capaz, mas daquele que aceita a maior precarização de seu trabalho, com riscos elevados de prejuízos ao erário.
O ordenamento jurídico pátrio, em interpretação atualizada, reconheceu essa distinção. A Lei nº 14.133/2021, ao tratar da inexigibilidade no art. 74, III, prevê a contratação de “serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, quando houver inviabilidade de competição”⁴. Essa inviabilidade não significa ausência de outros profissionais no mercado, mas sim impossibilidade de comparação objetiva, já que a escolha do patrono jurídico envolve atributos subjetivos como a notória especialização e a confiança. A nova lei superou a exigência da “singularidade” do serviço, presente na antiga Lei nº 8.666/93, focando na natureza do serviço e na qualificação do prestador.
O Supremo Tribunal Federal tem papel central nessa consolidação. Na ADI 6.331/PE, julgada em 2024, a Corte assentou que a autonomia dos municípios (arts. 18 e 30 da CF) impede que constituições estaduais imponham a criação obrigatória de procuradorias municipais⁵. Reconheceu-se a prerrogativa de cada ente de organizar sua assessoria jurídica conforme suas necessidades, admitindo a contratação externa em hipóteses excepcionais e motivadas. Já no RE 656.558/SP, Tema 535 de Repercussão Geral, reafirmou-se a constitucionalidade da contratação direta de serviços jurídicos, desde que cumpridos requisitos como procedimento formal, notória especialização e preço compatível com o mercado⁶.
Essas decisões afastam a visão binária que reduz a inexigibilidade a uma exceção meramente tolerada, reconhecendo-a como instrumento legítimo quando a competição for inviável. A análise dos órgãos de controle, portanto, deve evoluir: não basta perguntar “por que não licitou?”, mas “há motivação técnica robusta que comprove a inviabilidade de competição?”, “o contratado detém notória especialização pertinente?”, “o preço é proporcional à complexidade?”.
Na vivência prática, especialmente em pequenos e médios municípios, a inexistência de quadro jurídico especializado torna a contratação externa não luxo, mas necessidade administrativa. Exigir licitação nesses casos, para causas de alta complexidade como grandes execuções fiscais ou arbitragem em infraestrutura, equivale a condenar a gestão à ineficiência.
Os Tribunais de Contas têm reiterado que a inexigibilidade deve ser exceção, exigindo cinco pontos básicos: (i) justificativa técnica da inviabilidade de competição; (ii) comprovação da notória especialização; (iii) pesquisa de preços; (iv) definição clara do escopo; e (v) fiscalização contratual eficaz⁷. Quando atendidos, não há conflito entre controle e parceria, mas convergência de finalidades.
A nova Lei de Licitações também fortaleceu o papel da assessoria jurídica. O art. 53 determinou que, ao final da fase preparatória, o processo seja submetido a controle prévio de legalidade pelo órgão jurídico, abrangendo inclusive contratações diretas⁸. Essa filtragem é linha de defesa preventiva, conferindo mais responsabilidade e autonomia técnica ao parecerista — tema que encontra respaldo no PL 1.958/2022, em tramitação no Congresso, que busca proteger a independência técnica dos advogados públicos e pareceristas.
No plano acadêmico, Márcia de Barros Lima Santos destaca que a advocacia pública municipal qualifica a gestão e a prestação de serviços, devendo atuar no planejamento, na execução e no monitoramento de políticas públicas, com independência técnica e autonomia institucional⁹. Essa concepção aplica-se também à advocacia municipalista privada quando legitimamente chamada a suprir lacunas.
A prática confirma: o advogado municipalista vive entre o gabinete do prefeito, a secretaria de finanças, a controladoria, o Tribunal de Contas e o fórum. Um dia redige termo de referência para saúde; no outro, defende modelagem de licitação; no seguinte, participa de audiência pública; e, depois, organiza cobrança de créditos. Seu diálogo interno é com a legalidade, a transparência, o orçamento e a política pública. Essa processualidade, mais que atos isolados, demonstra o caráter essencial da advocacia municipalista à boa governança.
Reafirmar essa legitimidade não é corporativismo, mas garantia de que o município tenha, aqui e agora, a capacidade jurídica para cumprir a Constituição. Quando o controle presume desvio onde há técnica, todos perdem; quando reconhece a boa técnica, todos ganham. É nesse pacto — entre procuradorias, advocacia contratada, Ministério Público, Tribunais de Contas, OAB e sociedade — que a advocacia municipalista deve seguir: parceira, exigente, independente e comprometida com resultados públicos.
Referências
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