No contexto do ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, a promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um marco na consolidação dos direitos fundamentais, elegendo a dignidade da pessoa humana como pilar central do Estado Democrático de Direito. A partir disso, o art. 3º da Carta Magna estabelece, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, vedando qualquer forma de discriminação por origem, sexo, cor, idade ou quaisquer outras condições.
Embora tal avanço constitucional represente um marco significativo, a efetivação desses princípios enfrenta limitações concretas no cotidiano, sobretudo quando se trata da vivência plena da diversidade identitária. Ainda que a Constituição Federal erija como premissa a igualdade e a dignidade, o cotidiano de muitas famílias brasileiras impõe limites à vivência plena desses princípios, em especial quando se trata da expressão identitária de filhos e filhas LGBTQIAPN+. O discurso do amor incondicional familiar, elemento simbólico especialmente do afeto parental, frequentemente se mostra subordinado às expectativas sociais de cisheteronormatividade, convertendo a aceitação num privilégio, e não em um direito.
O preconceito motivado por homotransfobia manifesta-se de forma contundente sempre que crianças ou adolescentes desafiam o rígido “parâmetro social” da cisheteronormatividade. Tal fenômeno é evidente nas situações em que se torna inaceitável, aos olhos de uma sociedade pautada por padrões normativos excludentes, que meninos utilizem roupas ou acessórios considerados femininos. O contrário também é verdadeiro e preocupante. Nessas circunstâncias, a mera escolha de uma cor, como o rosa, ou um brinquedo “não correspondente” ao gênero atribuído à criança, já é vista como uma ameaça à ordem estabelecida do binarismo de gênero, gerando estigmatização, repreensão e, muitas vezes, exclusão do convívio social.
No âmbito familiar, a condicionalidade do afeto se revela quando a orientação sexual ou identidade de gênero dos filhos se afasta do padrão social hegemônico e, portanto, “esperado”. Tal conduta não se restringe ao desapontamento subjetivo, mas pode resultar em práticas objetivamente lesivas, como rejeição, coação, silenciamento, retaliações físicas e, nos casos mais graves, exclusão do convívio doméstico e/ou propriamente a morte. Tais situações tangenciam, inclusive, hipóteses de violência psicológica previstas na legislação pátria.
Majoram-se os efeitos da vulnerabilidade quando, em um ambiente homotransfóbico, a criança e/ou o adolescente é privado de direitos básicos (em razão, também, da vulnerabilidade e dependência financeira), ou exposto à “medidas corretivas” hostis, com o fito de “reverter” a homotranssexualidade da pessoa (em nítida violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente), gerando impactos severos na saúde mental, podendo, inclusive, conduzir ao suicídio.
A família, que deveria operar como espaço primordial de proteção, afeto e acolhimento, passa a reproduzir os mesmos padrões discriminatórios da sociedade, promovendo rejeição, humilhação e tentativas de repressão da expressão da criança. A condicionalidade do afeto é posta à prova: quando o menino ultrapassa o limite imposto pelo padrão cisheteronormativo, pais e responsáveis muitas vezes reagem com discursos corretivos, restrições, castigos e até ameaças de rompimento do vínculo afetivo. Essa dinâmica é agravada por valores culturais que ainda vinculam, de forma limitada e excludente, a masculinidade ao afastamento absoluto de qualquer traço tido como “feminino”.
Do ponto de vista jurídico, a legitimação dessas atitudes viola não apenas a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), mas afronta dispositivos protetivos presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece o princípio da proteção integral e assegura o direito à convivência familiar livre de discriminação e violência. Além disso, o art. 227 da Constituição também impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de garantir à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, vedando qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Assim, surgem indagações relevantes: até onde vai o poder dos pais sobre a vida íntima dos filhos? O exercício do poder familiar pode justificar restrições à identidade ou afetividade? Eventuais práticas discriminatórias caracterizam violação de dever legal e ensejam responsabilização civil por danos morais? Em que medida as autoridades podem e devem intervir para garantir a efetividade das normas protetoras? De que forma os filhos (crianças e adolescentes) seriam vistos por estas autoridades?
A condicionalidade do “amor” parental diante da identidade LGBTQIAPN+ dos filhos constitui expressão de discriminação incompatível com os fundamentos do Estado Democrático de Direito e com o verdadeiro significado de “família”. Superar esse quadro é desafio coletivo, que demanda não apenas evolução legislativa e atuação judicial, mas, sobretudo, maturidade ética para reconhecer que nenhum afeto é autêntico quando submetido a condições excludentes e violentas. O Direito, refletindo e pressionando a sociedade a avançar, deve reafirmar o compromisso constitucional com a dignidade e a pluralidade de existências, protegendo o direito de ser, pertencer e amar, inclusive e principalmente no seio da própria família.
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